CICLO
Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir


Escuro como breu, fundo nas reverberações, luminoso nos contrastes recortados em sombras. Um género? Assim vulgarmente designado, não é certo que o Film Noir seja exatamente um género, como o western ou o musical, nem uma corrente definida no espaço e no tempo como o cinema de Weimar na Alemanha, a Nouvelle Vague francesa ou o Free Cinema britânico. Género, movimento, registo, ciclo ou estilo cinematográfico, expressões para entendimentos modulados. “O noir é uma nebulosa” (Noël Simsolo); “é um vírus”, “um estilo visual que pode penetrar qualquer género” (Jeanine Basinger); “é uma opção distintamente codificada no seio do classicismo, um conjunto unificado de estratégias narrativas e processos estilísticos” (David Bordwell); “define-se pelas qualidades subtis do registo e da atmosfera” (Paul Schrader); “em termos simples, situações ou personagens idiossincráticas, muitas delas envolvendo a alienação ou a obsessão, e um estilo visual que sublinha essas emoções” (Alain Silver).
Expressão da infiltração difusa da ansiedade da Segunda Guerra, da depressão do pós-guerra, da tensão da Guerra Fria e do que delas foi vertendo para as comunidades e os indivíduos alastrando como mal-estar existencial, a matéria é vasta. Comporta inúmeros filmes com epicentro hollywoodiano nas décadas de 1940/50, outras tantas variações por sua vez declinadas em versões neo (grosso modo a partir dos anos 1960) e néon (no século XXI) no cinema global. Historicamente, revelou-se no olhar francês sobre visões americanas, justificando o uso persistente do termo francês que vingou sobre dark cinema ou cinema negro. Emergiu do ensaio pioneiro do crítico Nino Frank que cunhou o termo film noir em “Un Nouveau genre ‘policier’: L’Aventure criminelle” (Écran français, outubro 1946), indo possivelmente buscá-lo à coleção de romances criminais “Série noire” da Gallimard. Jean-Pierre Chartier, secundou-o em “Les Américains aussi font des films noirs” (Revue du cinéma, novembro 1946), e por aí se foi adiante. Falando de psicologia criminal, o primeiro reconhecia a unidade subterrânea de um ciclo de filmes americanos então apresentado em França, identificando uma atmosfera insólita e cruel atravessada por uma forte carga erótica em THE MALTESE FALCON de Huston, LAURA de Preminger, MURDER, MY SWEET de Dmytryk, DOUBLE INDEMNITY de Wilder e THE WOMAN IN THE WINDOW de Fritz Lang, primeiros casos identificados de listas por vir.
Autores como Raymond Borde e Étienne Chaumeton (no seminal Panorama du film noir américan 1941-1953, 1955) aprofundaram a análise, partindo da dificuldade da definição, e assentaram nas premissas do onirismo, do erotismo e da crueza, da presença do “dinamismo da morte violenta” (expressão de Frank), da vibração realista temperada por um espectro largo que abarca gangsters, melodrama ou o lirismo, distinguindo recorrências, motivos, figuras, fases, identificando a explosiva liberdade da época de ouro entre 1946 e 49. O primeiro livro dedicado ao noir, que o alinha com a sua época e a crítica subliminar dela de que os filmes participavam (muito concretamente a da corrupção nas profundezas da sociedade americana), continua a ser uma referência, ainda que as abordagens se multipliquem estudando fontes, tendências, posteridades, subcategorias e cronologias e diversidades de cinematografia, protagonistas escritores, realizadores, diretores de fotografia, atores.
Filiado na tradição hollywoodiana, marcado pelo cinema expressionista alemão e pelos muitos exilados europeus que aí desaguaram com a ascensão do nazismo – como mais tarde, nos primeiros anos da Guerra Fria, pelos blacklisted que continuaram a trabalhar sob pseudónimo –, o noir foi ocupando os estúdios, as grandes produções e a série B. O fulcro clássico americano noir foi lastrando noutros pesadelos e muitas paragens, que dobraram o século XX e, revisitando ou sobretudo reinventando, continuam a projetar-se.
Identificar motivos é generalizar, sem atender a cambiantes múltiplas ou à especificidade dos filmes, risco em que se incorre para notar como, além de atributos mencionados, o noir se expõe ao suspense ou ao seu susto, à fatalidade, frequentemente à estrutura em flashback e à voz off, à ambiguidade moral, à contradição, à fragmentação e complexidade narrativa, a estilhaços, a tormentos, angústias, claustrofobias, a móbiles criminais, desígnios malévolos, paixões funestas, motivações obscuras, memórias sem tréguas, deceções profundas. Vagueia entre detetives privados, figuras fatais, protótipos a que acresce toda a sorte de homens e mulheres devastados e devastadores.
O imaginário de perdição construído sobre narrativas aventuroso-criminal-desapiedado-dramáticas toma forma mais a preto-e-branco que a cores, mas a preto-e-branco e a cores, e quando sim, na saturação magnífica do processo tricromático. Em todo o caso, a utilização noir do Technicolor (LEAVE HER TO HEAVEN de Stahl, NIAGARA de Hathaway ou SLIGHTLY SCARLET de Dwan) é exceção à regra na época clássica. O iniludível estilo visual, refulgente em focos de luz, ricochetes luminosos, sombras expressivas, em cenários interiores ou exteriores, em planos retratistas ou médios e gerais, assenta numa fotografia de composição e iluminação de características particulares, adensando o efeito de tensão dramática: fotografia altamente contrastada, dominada por pretos e sombras em detrimento dos cinzas médios; minimalista nas fontes de iluminação, trabalhando as técnicas do chiaroscuro renascentista, o efeito agreste, projetando manchas sombreadas e sombras que atravessam cortinas e estores ou silhuetas, destacando os motivos da envolvência escura dos planos; perspetivas e ângulos rasos, etc.
“No Coração do Noir” é o primeiro dos dois passos do programa dedicado ao Film noir, propondo trinta títulos americanos realizados entre 1940 e 1959. A apresentar mais tarde, “Disponíveis para o Noir” propõe uma viagem por outras cinematografias atraídas pelo noir, em especial a francesa, a britânica e a japonesa. Informações integrais sobre os dois momentos do programa no desdobrável disponível em pdf em www.cinemateca.pt.
 
 
11/06/2021, 17h45 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir

Force of Evil
A Força do Mal
de Abraham Polonsky
Estados Unidos, 1948 - 78 min
 
12/06/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir

The Woman in the Window
Suprema Decisão
de Fritz Lang
Estados Unidos, 1944 - 99 min
12/06/2021, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir

Phantom Lady
A Mulher Desconhecida
de Robert Siodmak
Estados Unidos, 1944 - 86 min
14/06/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir

Murder, My Sweet
Enigma
de Edward Dmytryk
Estados Unidos, 1945 - 95 min
14/06/2021, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir

The Big Carnival / Ace in the Hole
O Grande Carnaval
de Billy Wilder
Estados Unidos, 1951 - 111 min
11/06/2021, 17h45 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir
Force of Evil
A Força do Mal
de Abraham Polonsky
com John Garfield, Beatrice Pearson, Thomas Gomez, Roy Roberts, Marie Windsor
Estados Unidos, 1948 - 78 min
legendado em espanhol e eletronicamente em português | M/12
Parábola sobre o capitalismo, a partir de uma revisitação à de Caim e Abel, FORCE OF EVIL corresponde a um projeto de Abraham Polonsky e John Garfield, que haviam trabalhado juntos em BODY AND SOUL de Robert Rossen (1947), com argumento do primeiro e protagonismo do segundo. Acabaram-no vítimas do McCarthismo, que lançou o anátema da “lista negra” ao realizador negando-lhe o trabalho em Hollywood, que ainda assim prosseguiu sob pseudónimos nas décadas seguintes, sobretudo como argumentista. O poder do filme, de rara ressonância política, falhou o sucesso junto do público da época, e conquistou o culto. David Thomson chamou-lhe um filme inacreditável como produção de Hollywood: “É uma fábula negra extraída de Karl Marx, mas filmada como se Fritz Lang a tivesse realizado na Alemanha.” A apresentar em cópia digital.

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12/06/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir
The Woman in the Window
Suprema Decisão
de Fritz Lang
com Edward G. Robinson, Joan Bennett, Raymond Massey, Dan Duryea
Estados Unidos, 1944 - 99 min
legendado em espanhol e eletronicamente em português | M/12
Joan Bennett e Edward G. Robinson encontram-se neste filme, pela primeira vez em Lang, que logo a seguir com eles filma o glacial SCARLET STREET. THE WOMAN IN THE WINDOW é o filme que mais se coloca sob a instância psicanalítica, na manifestação do sonho como reflexo de culpas não assumidas. Todo ele é uma construção onírica acerca dum homem comum que se deixa envolver nas teias de uma mulher fatal que o conduzem ao crime, num ritmo de pesadelo. Acorda-se no desfecho, alvo de controvérsia mas defendido por Lang como opção de partida, contrária ao do argumentista e produtor Nunnally Johnson. Um remate em acordo com a estrutura framing story do filme, a partir do retrato emoldurado da “dream girl” visto na montra. A última passagem na Cinemateca foi em 2013.

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12/06/2021, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir
Phantom Lady
A Mulher Desconhecida
de Robert Siodmak
com Franchot Tone, Ella Raines, Alan Curtis, Thomas Gomez
Estados Unidos, 1944 - 86 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Adaptado de um dos mais conhecidos romances de Cornel Woolrich, e produzido para a Universal por Joan Harrison (também conhecida como argumentista de Hitchcock, em REBECCA ou SUSPICION), PHANTOM LADY é um excecional filme de Siodmak, um noir vulgarmente associado à influência do imaginário expressionista trazido para Hollywood pelos imigrados do cinema alemão. Um homem, acusado de ter matado a mulher, procura descobrir o verdadeiro assassino através de uma enigmática testemunha “ausente”. Raras vezes houve um tal cúmulo da panóplia visual e temática do noir: sombras, ação intricada, trama narrativa próxima do pesadelo, ação quase sempre noturna. A apresentar em cópia digital.

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14/06/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir
Murder, My Sweet
Enigma
de Edward Dmytryk
com Dick Powell, Claire Trevor, Anne Shirley, Mike Mazurki, Otto Kruger
Estados Unidos, 1945 - 95 min
legendado em espanhol e eletronicamente em português | M/12
Referência clássica do noir, baseada no romance de Raymond Chandler Farewell, My Lovely, título pelo qual o filme muitas vezes é designado. O protagonista é o detetive privado Philip Marlowe, aqui na sua primeira aparição cinematográfica, na pele de Dick Powell, e que seria encarnado, entre outros, por Humphrey Bogart e Robert Mitchum. A trama narrativa, complexa como a de todo o noir, põe Marlowe às voltas com uma série de homicídios misteriosos e tentativas de assassinato dele próprio. Fá-lo também atravessar o caminho da perversa personagem de Claire Trevor, atriz de não poucos noir. A narrativa em off na primeira pessoa e a adoção da câmara subjetiva (a que Robert Montgomery volta em LADY IN THE LAKE e Delmer Daves extrema em DARK PASSAGE, em 1947) alinham com a crueza da perspetiva de Marlowe. Extraordinária criação de ambientes de ameaça, típica do noir, numa verdadeira metáfora do medo. A última passagem na Cinemateca foi em 2013; a apresentar em cópia digital.

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14/06/2021, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar os Grandes Géneros: Film Noir | No Coração do Noir
The Big Carnival / Ace in the Hole
O Grande Carnaval
de Billy Wilder
com Kirk Douglas, Jan Sterling, Robert Arthur, Porter Hall
Estados Unidos, 1951 - 111 min
legendado em espanhol e eletronicamente em português | M/12
Tudo o que se tem escrito sobre jornalismo sensacionalista já estava dito e denunciado nesta obra-prima de Wilder, que acumula realização, argumento e produção, assinando um filme de rara brutalidade e sufocação. O negrume é interior, e se o escuro é literalmente filmado no buraco de uma montanha, a ação decorre decisivamente na paisagem aberta do deserto mexicano batido pelo sol: um dito jornalista indecentemente movido pelo sensacionalismo mais reles (extraordinário Kirk Douglas) explora até ao último fôlego o drama de um homem soterrado enquanto os trabalhos de escavação se fazem ouvir sonoramente. À volta da tragédia monta-se um circo, uma autêntica feira, o “carnaval” do título, também conhecido por ACE IN THE HOLE (recentemente resgatado, era o título inicialmente previsto, que a Paramount desdenhou por associações de sonoridade).

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