I
“Film Als Kunst” foi publicado pela primeira vez na Alemanha em 1932, como refere o próprio Arnheim, “imediatamente antes da chegada ao poder de Adolf Hitler”, e esta referência parece ser importante para o autor, justamente porque coloca a obra no contexto cultural específico em que surgiu e que estava prestes a desaparecer. É importante referir esse contexto – o universo cultural em que surge – já que os escritos aqui incluídos correspondem justamente às três primeiras décadas do cinema, o que determina fundamentalmente o pensamento de Arnheim, como veremos adiante.
Em Portugal, a obra conheceu duas edições, ambas a partir da versão em língua inglesa: a primeira foi publicada pela Editorial Aster em 1960 e a segunda, pelas Edições 70 em 1989. A edição Aster inclui um prefácio de Domingos Mascarenhas destinado a apresentar Rudolf Arnheim aos leitores portugueses, sintetizando alguns aspectos do seu pensamento. Para além disso, esta edição reproduz as ilustrações fotográficas da edição Faber & Faber, coisa que não acontece com a segunda das edições. No entanto, e do nosso ponto de vista, esta última constitui uma tradução mais exacta e escorreita, o que não é despiciendo, tratando-se como se trata de um nível de teorização também ele muito preciso e despojado.
A primeira questão que se coloca a quem se debruça sobre estas páginas, questão essa que o próprio Arnheim não elide, é a de saber qual é o lugar ocupado pelo cinema no, digamos assim, sistema de pensamento do autor. E descobre-se que, de facto, o cinema, depois de um primeiro estádio de absoluto fascínio, onde verteu tudo aquilo que aprendeu de psicologia e de história da arte, começou a perder a sua aura com a chegada do cinema sonoro. Como ele próprio nos diz numa nota pessoal datada de 1957 e introduzida na edição da obra em língua inglesa
[1]:
“Compared with the broader aspects of artistic vision, which have absorbed my attention lately, film seems a limited subject.”
Assim sendo, que motivação o terá levado a um tão profundo interesse pelo cinema no período em que decorreu a redação desta obra? Na altura, Arnheim estava profundamente empenhado no desenvolvimento de uma corrente de pensamento conhecida como
Materialtheorie, um tipo de reflexão que pretendia demonstrar que as descrições científicas e artísticas da realidade surgiam em moldes que derivavam não tanto dos temas tratados em si mesmos e mais das propriedades do
médium – para empregar um termo moderno, estranho a Arnheim – ou seja, do material. Esta afirmação pode parecer reducionista face ao que ele mesmo declara na já referida nota:
“I was impressed by the geometrically and numerically simple forms, by the regularity and symmetry found in early cosmologies as well in Bohr’s atomic model, in philosophical systems, and in the art of primitives and children.”
[2]
Esta insistência na simplicidade geométrica e numérica das formas, na “simetria”, regularidade, etc. tem uma profunda implicação no desenvolvimento da teoria cinematográfica de Arnheim, já que poderia indicar uma tónica kantiana com profunda ressonância na teorização proposta pelo autor e que podemos sintetizar deste modo: mesmo os mais elementares processos da visão não produzem registos do mundo exterior, mas organizam criativamente o material sensível em bruto, de acordo com os já referidos princípios de simplicidade, regularidade e equilíbrio que regulam o mecanismo de recepção, Neste ponto, convém referir que Arnheim subscrevia – e desenvolveu – os princípios da escola do
gestaltismo, um tipo de psicologia que observava e privilegiava a pregnância das formas, sustentando que a obra de arte não é uma simples reprodução ou duplicação selectiva da realidade, mas a translação de características da realidade observada para as formas de uma determinada forma de expressão artística. Esta tese e os seus desenvolvimentos ficam bem patentes na seguinte formulação:
“Demonstrámos que as imagens que recebemos do mundo material diferem das que vemos na tela. Toda a exposição anterior tinha por fim refutar a afirmação de que o cinema não passava de uma fraca reprodução mecânica da vida real.”
[3]
A questão que podemos e devemos colocar é: passará o cinema o teste a que esta teoria o sujeita? E a resposta é: sim, do nosso ponto de vista, Arnheim é profundamente coerente e consistente na demonstração de características do cinema que ficam aquém da mera reprodução mecânica da realidade, tornando-o por isso apto a agir de acordo com os princípios de um meio de expressão artística.
[1] Film As Art, London, Faber & Faber, 1958, p. 12.
[3] A Arte do Cinema, Lisboa Edições 70, 1989, p. 36.