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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 02/01/2025
Textos & Imagens 64
Textos & Imagens 64
I
 
“Film Als Kunst” foi publicado pela primeira vez na Alemanha em 1932, como refere o próprio Arnheim, “imediatamente antes da chegada ao poder de Adolf Hitler”, e esta referência parece ser importante para o autor, justamente porque coloca a obra no contexto cultural específico em que surgiu e que estava prestes a desaparecer. É importante referir esse contexto – o universo cultural em que surge – já que os escritos aqui incluídos correspondem justamente às três primeiras décadas do cinema, o que determina fundamentalmente o pensamento de Arnheim, como veremos adiante.
Em Portugal, a obra conheceu duas edições, ambas a partir da versão em língua inglesa: a primeira foi publicada pela Editorial Aster em 1960 e a segunda, pelas Edições 70 em 1989. A edição Aster inclui um prefácio de Domingos Mascarenhas destinado a apresentar Rudolf Arnheim aos leitores portugueses, sintetizando alguns aspectos do seu pensamento. Para além disso, esta edição reproduz as ilustrações fotográficas da edição Faber & Faber, coisa que não acontece com a segunda das edições. No entanto, e do nosso ponto de vista, esta última constitui uma tradução mais exacta e escorreita, o que não é despiciendo, tratando-se como se trata de um nível de teorização também ele muito preciso e despojado.
A primeira questão que se coloca a quem se debruça sobre estas páginas, questão essa que o próprio Arnheim não elide, é a de saber qual é o lugar ocupado pelo cinema no, digamos assim, sistema de pensamento do autor. E descobre-se que, de facto, o cinema, depois de um primeiro estádio de absoluto fascínio, onde verteu tudo aquilo que aprendeu de psicologia e de história da arte, começou a perder a sua aura com a chegada do cinema sonoro. Como ele próprio nos diz numa nota pessoal datada de 1957 e introduzida na edição da obra em língua inglesa[1]:
“Compared with the broader aspects of artistic vision, which have absorbed my attention lately, film seems a limited subject.”
Assim sendo, que motivação o terá levado a um tão profundo interesse pelo cinema no período em que decorreu a redação desta obra? Na altura, Arnheim estava profundamente empenhado no desenvolvimento de uma corrente de pensamento conhecida como Materialtheorie, um tipo de reflexão que pretendia demonstrar que as descrições científicas e artísticas da realidade surgiam em moldes que derivavam não tanto dos temas tratados em si mesmos e mais das propriedades do médium – para empregar um termo moderno, estranho a Arnheim – ou seja, do material. Esta afirmação pode parecer reducionista face ao que ele mesmo declara na já referida nota:
“I was impressed by the geometrically and numerically simple forms, by the regularity and symmetry found in early cosmologies as well in Bohr’s atomic model, in philosophical systems, and in the art of primitives and children.”[2]
Esta insistência na simplicidade geométrica e numérica das formas, na “simetria”, regularidade, etc. tem uma profunda implicação no desenvolvimento da teoria cinematográfica de Arnheim, já que poderia indicar  uma tónica kantiana com profunda ressonância na teorização proposta pelo autor e que podemos sintetizar deste modo: mesmo os mais elementares processos da visão não produzem registos do mundo exterior, mas organizam criativamente o material sensível em bruto, de acordo com os já referidos princípios de simplicidade, regularidade e equilíbrio que regulam o mecanismo de recepção, Neste ponto, convém referir que Arnheim subscrevia – e desenvolveu – os princípios da escola do gestaltismo, um tipo de psicologia que observava e privilegiava a pregnância das formas, sustentando que a obra de arte não é uma simples reprodução ou duplicação selectiva da realidade, mas a translação de características da realidade observada para as formas de uma determinada forma de expressão artística. Esta tese e os seus desenvolvimentos ficam bem patentes na seguinte formulação:
“Demonstrámos que as imagens que recebemos do mundo material diferem das que vemos na tela. Toda a exposição anterior tinha por fim refutar a afirmação de que o cinema não passava de uma fraca reprodução mecânica da vida real.”[3]
 
A questão que podemos e devemos colocar é: passará o cinema o teste a que esta teoria o sujeita? E a resposta é: sim, do nosso ponto de vista, Arnheim é profundamente coerente e consistente na demonstração de características do cinema que ficam aquém da mera reprodução mecânica da realidade, tornando-o por isso apto a agir de acordo com os princípios de um meio de expressão artística.
 
[1] Film As Art, London, Faber & Faber, 1958, p. 12.
[2] Ibid.
[3] A Arte do Cinema, Lisboa Edições 70, 1989, p. 36.
II

O programa da obra está já contido quer no título original – “Film Als Kunst” –, quer no título da edição inglesa “Film As Art” – e perde-se nas duas traduções portuguesas; tomado à letra deveria ser “O Cinema Como Arte”. De facto, o que resulta da estrutura conceptual da obra e que é o objecto da demonstração teorética levada a cabo por Arnheim é, como já aludimos, refutar a consideração da impossibilidade do cinema (e da fotografia) constituir uma forma de expressão artística devido ao seu carácter de reprodução mecânica da realidade, um desígnio patente na seguinte afirmação:
“Deve refutar-se completa e sistematicamente a afirmação de que a fotografia e o cinema são só reproduções mecânicas e, por conseguinte, não relacionadas com a arte. Mas talvez seja este um excelente método para compreender a natureza da arte do cinema.”[1]
Sublinhe-se a referência a um “método”, cuja progressão podemos caracterizar deste modo: recordando que Arnheim se refere sempre ao universo do cinema mudo (que classifica como “uma experiência única no domínio das artes visuais) e se debruça essencialmente sobre cineastas que fizeram progredir o cinema no sentido de uma forma de expressão artística (Charles Chaplin, F.W. Murnau, E.A. Dupont, Carl Dreyer, René Clair, Sergei Eisenstein, King Vidor e outros), chega a uma conclusão avassaladora: embora a fotografia e o cinema produzam imagens num formato bidimensional e a preto e branco: “o efeito do filme não é absolutamente bidimensional nem absolutamente tridimensional, mas qualquer coisa de intermédio. Os filmes são simultaneamente planos e sólidos”.[2]
Assim, o próximo passo lógico da análise consiste na discussão da imensa variedade de escolhas estéticas que determinam decisivamente a natureza da imagem e lhe conferem o estatuto artístico: ângulos de câmara e a sua disposição, seleção de lentes, iluminação, montagem, etc. A insistência na descrição dos efeitos que constituem uma relação directa entre arte e percepção visual – que Arnheim valoriza em extremo – é muito evidente em toda a obra e de grande alcance, pois é justamente essa relação que contribui decisivamente para o estatuto artístico do cinema, uma ideia expressa nos seguintes termos:
“A antiga aspiração do homem de criar coisas semelhantes às que o rodeiam encontrou renovada satisfação quando foi capaz de reproduzir o movimento. Quaisquer que sejam as causas psicológicas do desejo de criar semelhanças, bastará dizer que a criação de imagens de acontecimentos é ainda mais importante do que representar objectos nas suas formas estáticas e cores, porque a reacção biológica fundamental é a de recriar acontecimentos e não de os contemplar. Correspondentemente, as artes estão, desde o início, interessadas em situações dinâmicas: cenas de caça, guerra, cortejos triunfantes e funerais, danças e festas.”[3]
Para o leitor moderno, imerso em toda a parafernália de maravilhas tecnológicas ao seu dispor, será surpreendente constatar que aquilo que Arnheim coloca como pedra-de-toque da sua argumentação assenta principalmente nos, digamos assim, “defeitos”, ou imperfeições técnicas, do cinema que lhe permitem ter uma ambição artística. Na nossa perspectiva, isso corresponde a um deslocamento do sentido das questões e dos pressupostos iniciais; o que Arnheim no fundo nos parece dizer é que aquilo que o cinema – e, em certa medida, também a fotografia, mas não completamente, já que a esta falta o elemento essencial de reprodução do movimento – realiza, ou procura realizar, não é a reprodução mecânica da realidade, o que, como já ficou dito, lhe retiraria a capacidade de se constituir como arte, mas o modo como percepcionamos a realidade. A ser assim, esta obra opera uma revolução coperniciana (no sentido em que Kant utilizou a expressão) no modo como pensamos ainda hoje a relação entre cinema e realidade.
 
Arnaldo Mesquita
 
Rudolf Arnheim, A Arte do cinema. Lisboa: Editorial Aster, 1960; Lisboa: Edições 70, 1989.
Tipologia documental: livro
Cota: 62
 
[1] Ibid, p. 18.
[2] Ibid, p. 20.
[3] Ibid, p. 129.