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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 03/07/2020
Textos & Imagens 47
Textos & Imagens 47
De entre a vasta bibliografia sobre a obra de Manoel de Oliveira que integra o catálogo da Biblioteca, destacamos hoje “Manoel de Oliveira” de Jacques Parsi, editado em Paris pelo Centre Culturel Gulbenkian no ano de 2002.
Existem muito boas razões para salientarmos esta obra, uma das quais tem a ver com a estreita relação pessoal de biógrafo e biografado ou, entre o autor e o seu intérprete, já que não se trata de uma biografia em sentido estrito. De facto, estamos perante um texto que combina exemplarmente as características de uma biografia clássica (ou de um estudo bio-filmográfico convencional) e os traços de um labor hermenêutico que ilumina e esclarece aspectos específicos da obra do cineasta.
Regressando à relação entre Oliveira e Parsi, ouçamos a declaração lapidar de Paulo Branco:
“(...) a amizade e a confiança recíproca entre os dois homens permitiu a Jacques penetrar no universo de Manoel como ninguém e compreender as suas necessidades muito rapidamente. A sua generosidade é absoluta. Formam um verdadeiro par (...)”
De certo modo, a estreita relação pessoal e profissional entre Parsi e Oliveira pode ser pensada como um eco, ou uma ressonãncia simbólica e emblemática da realção do cineasta com a França; uma relação privilegiada e única, bi-direcional, que permitiu que a obra do cineasta tivesse alcançado uma projecção internacional e que creditou ao país a produção ou co-produção de alguns dos grandes filmes que integram o seu corpus cinematográfico. Mas não só: Jacques Parsi dedica uma grande parte do seu livro a descrever essa relação, enumerando as homenagens, ciclos, retrospectivas, etc. que a França dedicou ao cineasta português e destacando passo a passo cada um dos eventos que pontuam o caminho percorrido e que são, cada um a seu modo, extraordinariamente significativos. Para que fique claro, selecionámos arbitrariamente dois deles que, de acordo com Parsi, são menos conhecidos:
Por ocasião da morte de Robert Bresson, o jornal Libération de 22 de Dezembro 1999, publicou as reacções do Ministro da Cultura, do Primeiro Ministro e de Manoel de Oliveira. Significativamente, nenhum outro cineasta. Por outro lado, também em Dezembro de 1999, nada menos que o jornal Le Nouvel Observateur, lançou um inquérito intitulado “Le XXe siècle jugé par ceux qui l’ont fait”, pedindo a sessenta personalidades que declarassem aquilo que retinham do século. Entre as personalidades que responderam ao inquérito figuravam: o Dalai Lama, Shimon Pérés, Elie Wiesel e numerosos agraciados com o Prémio Nobel. E ainda Mário Soares. O único cineasta ? Precisamente Manoel de Oliveira. Dir-se-á que estes dois eventos ocorrem no quadro extra-institucional francês. Quanto a nós, tal não lhes diminui a importância e o significado, antes pelo contrário,  já que demonstram quão valorizados foram a personalidade e o pensamento de Oliveira no âmbito cultural do país, simultaneamente no quadro institucional e no seu exterior.
No que diz respeito à biografia e à hermenêutica da obra do cineasta, é notável a forma como Parsi enquadra e estabelece correspondências e correlativos exactos entre a génese da obra cinematográfica de Oliveira, a sua progressão e desenvolvimento (bem como as limitações de vária ordem que sofreu) e o ambiente e as circunstâncias sociais e políticas do país. A esse título, é significativo assinalar o modo como Parsi observa os anos de marasmo da obra de Oliveira nos anos que se seguem à realização de Aniki-Bóbó e uma espécie de resistência que o regime, através do Secretariado Nacional de Informação, opunha a qualquer projecto do cineasta, ao ponto de o cineasta ter seriamente ponderado a hipótese de desistir definitvamente do cinema e queimar (literalmente) os projectos, os negativos e a película. Tipicamente, Parsi procura reflectir sobre as razões desse veto contínuo do SNI aos projectos do cineasta e descortina na própria essência do regime político vigente as causas para tal desacerto: a obra do cineasta não se enquadrava de nenhum modo nos desígnios propagandísticos, a tal “política do espírito”, e revelava-se incapaz de contribuir para o condicionamento mental e emocional do público português. Quase duas décadas depois, Parsi invoca o exemplo de Acto da Primavera para demonstrar o modo como Oliveira e o regime se desentendiam em aspectos cruciais. Realizado em 1963, o filme foi o único na obra do cineasta a receber uma ajuda estatal, irrecusável visto tratar-se de uma representação da Paixão de Cristo. Uma representação que, longe de agradar aos corifeus de serviço, longe do folclorismo pretendido pelos mesmos, se revela violenta e agreste, crua e pura e, sobretudo, longe dos cânones tradições de representação da Paixão. Nesse sentido, Parsi não deixa de assinalar que é por essa época que Oliveira repensa integralmente as suas concepções estéticas e de representação, no teatro e no cinema, dando origem a uma nova etapa no seu projecto cinematográfico. 
Há muitos outros exemplos de antagonismo entre o cineasta e as circunstâncias, abundantemente descritas por Parsi, pelo que remetemos para a leitura da obra para o seu cabal esclarecimento. Mas há outra dimensão de antagonismo mais enigmática e difícil de explicar, que Parsi disseca com inexcedível brilhantismo: o “divórcio” entre o cinema de Manoel de Oliveira e o público português, problema a que o autor dedica uma secção completa do livro. Nessas páginas, intituladas “Spectateurs”, começa-se por fazer uma distinção que para Oliveira constituía um valor: a distinção entre público e espectador, entre massa e indivíduo, que divide o homem dotado de sensibilidade, pensamento e recordações e a multidão deles desprovida. Assim, para o cineasta o que era realmente importante era chegar aos indíviduos, preocupando-se em fazê-los participar de uma comunhão resultante da leitura dos seus filmes. De uma forma veemente, Parsi acentua a procura de simplicidade que sempre norteou o processo criativo de Oliveira e caracteriza essencialmente os seus filmes. Como ele próprio diz:
“Quitte à surprende certains, ses films sont, à l’exception de la Divine Comédie et du Couvent, d’un accés très facile. Oliveira opère toujours, à quelque moment que ce soit de la réalisation de son filme, le choix de la simplicité”.
Concorde-se ou não com esta afirmação, a conclusão é definitiva: aquilo que o projecto do cineasta encerra é a ambição de conferir ordem à desordem de um mundo já de si desordenado e caótico, sem lhe acrescentar obscuridades e enigmas. Nesse sentido, Parsi parece pensar que a proposta do cineasta vai ao encontro do significado de aletheia (verdade), tal como os gregos antigos o conceberam: a-letheia ou aquilo que se desvela, que deixa de estar encoberto. Falta ainda um passo para a compreensão do “divórcio”. E Parsi é pristino na sua análise, atribuindo a situação aos hábitos dos espectadores (ou do publico ?), ou o seu condicionamento pelo que já viu, por aquilo que lhe é proposto pelo cinema da sua época (códigos, convenções estabelecidas entre aquilo que é representado e o espectador) e o cinema de Manoel de Oliveira cria os seus próprios códigos e as suas próprias convenções (o que não o torna um caso singular), ou utiliza códigos caídos em desuso. Com que fim ?  A resposta de Parsi é: para que o espectador, o tal que o cineasta valorizava em detrimento do público, não tenha a ilusão de estar defronte da realidade. Logo, a tónica é posta na criação de uma realidade fictiva e de uma verdade essencial.
Na nossa perspectiva, a abordagem heurística da obra de Manoel de Oliveira empreendida por Jacques Parsi conduz a uma conclusão: o autor ilustra uma obra cinematográfica que se debruça sobre a totalidade do mundo, reciarndo-o, em que a arte se impregna de vida e ambas em conjunto abrangem e reflectem as diversas dimensões da experiência humana. Dito por outras palavras, o “significado” da obra de Oliveira coincide com a aparência, as palavras com as coisas, as ideias com as experiências.
 
Q.E.D.
 
Arnaldo Mesquita
 
Manoel de Oliveira: cinéaste portugais XXe siècle / Jacques Parsi. Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2002
Tipologia documental: livro
Cotas: 81 OLIVEIRA; 995 IFP_A90