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Assunto: Coleções
Data: 02/08/2018
Textos & Imagens 31
Textos & Imagens 31
De Henri Langlois tudo já foi dito e redito: das suas proezas, dos traços gargantuescos da sua personalidade, da sua importância no movimento das Cinematecas (“o dragão que guarda os nossos tesouros” e outras metáforas e alegorias comoventes e plenas de expressividade). Inclusivamente, já se escreveu sobre a estreita relação entre as Cinematecas francesa e portuguesa (ver o texto nº 10 desta série, da autoria de Alexandra Santos Jorge). O mesmo não se passa em relação à sua atividade como escritor, ou, para o nosso propósito, da sua prática como historiador. De facto, como refere Jean Narboni no “Avertissement” desta obra, muitas vezes surge a pergunta “Então, ele também escrevia?”. Como veremos, não só escrevia, como “inventou” uma forma particular de escrever e de construir não só a história do cinema, como também a própria História, com maiúscula, ou seja aquilo que estamos habituados a considerar os processos históricos que abraçam a globalidade da vivência e da experiência humanas, num sentido específico e determinado. Esta abordagem permite-nos falar da historicidade da sua empresa, evitando o escolho e o embaraço do seu historicismo. Ao contrário do que alguns poderão pensar, o modo como Langlois organiza o seu pensamento e lhe dá forma escrita é extraordinariamente preciso, rigoroso e métodico, aplicando uma disciplina estrita de produção do discurso e fixando os seus limites através de um jogo que reatualiza permanentemente a sua identidade e o seu alcance.
O primeiro capítulo – que fornece o título ao volume – organiza-se em torno de um princípio geral que fixa o começo da história da cinematografia no século XVII, com os trabalhos do padre jesuíta A. Kircher e da obra “Ars Magna Lucis Et Umbrae” (cf. o nº 3 desta série “Textos & Imagens”, dedicado a esta obra), o que justifica o título “Trois Cents Ans de Cinématographie 1655-1955”. No entanto, o princípio geral enunciado é rapidamente desmentido por tudo aquilo que se segue; afinal, o desejo de fixar imagens e reproduzir o movimento encontra as suas raízes na Antiguidade (Platão, como sabemos, tinha já descrito em “A República” uma espécie de “câmara negra”) e toda a evolução posterior, que nos habituámos a designar como pré-cinema, destinada a culminar nas primeiras projeções dos irmãos Lumière, mais não foi do que uma longa relação de causa/efeito desembocando numa conclusão que, de tão evidentemente necessária, anula toda a contingência. Neste fulgurante ensaio, Henri Langlois combina magistralmente a sua sabedoria com dois princípios operativos muito fortes: a arqueologia que, como sabemos, procura o primeiro princípio e olha para a realidade em termos de estratificação, e a genealogia que procura a origem (histórica ou não), uma origem que não está estabelecida de modo imediato, sendo preciso proceder à sua reconstituição. E revela uma outra dimensão do pensamento de Langlois: a sua vertente política, materializada na legitimação cultural e patrimonial do cinema; não só das obras cinematográficas em sentido estrito, mas também dos artefactos, objetos e dos materiais que directa ou indiretamente produziu. Esta pretensão política fundamenta-se na historicidade a que aludimos anteriormente; os contextos históricos precisos autorizam uma visão estruturada que coloca o cinema (e a sua pré-história) numa racionalidade sem falhas. Por esse motivo, ao adjetivo fulgurante acrescentamos o de totalizante.
O segundo ensaio da coletânea (“Soixante Ans D’Art Cinématographique (1895-1955)”, bastante mais longo do que o primeiro, assinala as grandes etapas da evolução histórica do cinema nos seus primeiros sessenta nos de existência, introduzindo as temáticas da coleta, conservação e preservação, contendo ainda um esboço do chamado “movimento das cinematecas”, enunciando em pinceladas largas as problemáticas correlativas. É o Langlois recoletor/“glaneur” que sucede, complementa e justifica o Langlois historiador/político, antecendendo os ensaios que se dedicam exclusivamente à história, coleções e atividades da Cinémathèque Française e a textos de diferentes naturezas e distintos propósitos, que se debruçam sobre o “cinéma des nations” e sobre a obra de grandes figuras da história do cinema mundial, constituindo não um panteão, mas uma constelação de estrelas de intenso brilho (Cocteau, Epstein, Chaplin, Méliès, Stroheim, Bergman e tantos outros cuja memória e ilustração resultam da sua relação direta com Langlois).
Como caracterizar então o pensamento de Henri Langlois? Dificilmente classificável, é quase impossível enquadrá-lo num modelo estável e fixo, de tal modo se afasta dos empreendimentos crítico-teóricos canónicos, partilhando com eles apenas um aspeto muito específico: a tendência para uma visão totalizante, contrariada aqui pela dispersão dos centros. Assim, poderiamos ensaiar uma (provisória) caracterização: uma série de sistematicidades descontínuas cujo sentido é dado pela perspetiva, pelo ângulo de abordagem e pela delimitação do objeto. No fundo, o que distingue as duas categorias (empreendimento crítico – empreendimento arqueológico/genealógico), não é tanto o objeto como a perspetiva. E a de Langlois é única e irrepetível.
Afinal, de tanto querermos evitar falar do historicismo de Langlois, optando pela historicidade e positividade, nele desenbocamos inevitavelmente, sem com isso lhe atribuírmos uma natureza negativa: as visões originais, espontâneas, apaixonadas, são sempre mais interessantes e fecundas do que as estritamente rigorosas, frias e mecânicas. Se, como assinala Jean Narboni, para Langlois tudo o que aconteceu no mundo (desde a origem dos tempos) conduziu necessariamente “1) ao cinema 2) à Cinémathèque Française”, resta-nos concluir que Langlois assumiu um mecanismo de interação entre tradição histórica e enriquecimento fictício precisamente no momento em que, no sítio onde ficara uma lacuna no existente autêntico, a fantasia toma as rédeas para cumprir o que o historiador tardio reputava de essencial. Por outras palavras, se o mundo e a sua história têm como corolário os mitos e os fantasmas que povoam o “museu imaginário”[1] do Doutor Langlois, tal não diminui, antes pelo contrário acrescenta a imensidão e o valor absoluto do seu legado.
 
Arnaldo Mesquita
 
Trois cents ans de cinéma : écrits / Henri Langlois; Jean Narboni, compil. Paris, Cahiers du Cinéma; Cinémathèque Française, cop. 1986.
Tipologia documental: livro
Cota: 70
 
[1] A felicíssima expressão foi cunhada por André Malraux.