Contexto:
Salvo raríssimas exceções, as provas fotográficas do acervo da Cinemateca, num total aproximado de 400.000 itens, são arquivadas nas estantes não por fundos ou coleções mas por um esquema de classificação temático que contém 3 classes: fotografias de filmes (subclasses organizadas por realizador, por sua vez subdivididas por filme específico e, dentro deste, por tipo de obra: fotografias de rodagem ou de produção, fotografias de cena, fotografias promocionais), fotografias de personalidades e fotografias de outros assuntos relacionados com a história do cinema (por exemplo, eventos, salas de cinema, estúdios e laboratórios, etc.). Este esquema de organização dos documentos nas estantes
[i] implica, assim, que o enfoque do processamento documental seja colocado na análise e descrição de conteúdo, operação indispensável para a sua “justa” arrumação.
De salientar, ainda, que as fotografias de filmes são frequentemente documentos “mudos” ou “silenciosos”, isto é, que não contêm em si os dados formais desejados para a sua identificação plena (título, autor, data e local de produção, objeto representado, etc.), sendo por isso necessário consultar fontes diversas para completar a sua descrição – e, consequentemente, a sua arrumação, acesso e comunicação.
Em análise:
A situação que aqui se apresenta diz respeito ao tratamento documental de provas fotográficas de filmes produzidos em diversas versões linguísticas, realizados na Europa e nos Estados Unidos nos primeiros anos da década de 30 como resposta aos obstáculos linguísticos na difusão internacional de filmes decorrentes da introdução do cinema sonoro
[ii]: um mesmo filme é rodado em simultâneo por equipas diferentes oriundas de diversos países e diferentes línguas
[iii]. A ideia é aplicada por diversas companhias produtoras, mas será nos estúdios da UFA (Universum Film AG) em Neubabelsberg, nos arredores de Berlim, que o fenómeno de coprodução intra-europeia em multi-versões linguísticas conhece maior dimensão. As produções eram trilingues e, por vezes, quadrilingues (alemão, francês, inglês, húngaro
[iv]), de modo a abarcar inúmeros mercados no mundo inteiro. O alcance comercial não foi uniforme, tendo a coprodução para as versões em língua inglesa terminado em 1933 por não conseguir penetrar no tão desejado mercado norte-americano, mantendo-se a produção de versões em língua francesa, de maior sucesso e capacidade de exportação. No caso português, a maioria dos filmes produzidos em múltiplas versões linguísticas exibidos foram-no na sua versão francesa, «por a língua nos ser mais familiar»
[v], o que não implica, de todo, que as provas fotográficas existentes no acervo da Cinemateca correspondam a essas versões
[vi].
Mas se as filmagens são poliglotas, as fotografias mantêm-se silenciosas, colocando-se assim a pergunta: qual o filme (ou a versão) retratado na imagem?
#1. A primeira imagem com que nos deparámos quando começámos a trabalhar as fotografias de cena e de rodagem de filmes com diversas versões produzidos pela UFA foi uma fotografia identificada no verso, a lápis, com o título
Stupéfiants, filme de Kurt Gerron e Roger Le Bon rodado, em parte, em Portugal em 1932. Sabendo que o filme teve duas versões, alemã e francesa, importava por isso saber a qual delas corresponderia aquela precisa imagem: à versão principal (alemã) ou à sua equivalente em língua francesa? Na imagem vê-se um barco, o
General Osório, mas todos os seus ocupantes estão de costas. Sabendo, pela leitura de literatura especializada, que embora a assunção de que as cenas de rua e de multidões eram geralmente filmadas em planos gerais e usadas em todas as versões seja comummente aceite, a análise de filmes específicos pode demonstrar o contrário dado que os mercados a que estes filmes se destinavam eram bastante abrangentes mas não homogéneos e por isso as diferentes versões procuravam ir ao encontro dessa hegemonia, não podíamos assumir que o plano representado na imagem corresponderia às duas versões. A imagem tem uma marca de impressão: «72 - - F.53». Não existem mais imagens do(s) mesmo(s) filme(s).
#2. Várias fotografias do filme
FP1, distribuído em Portugal pela Agência H. da Costa. A sua identificação foi bastante mais simples do que o “caso” anterior, uma vez que as três versões do filme (nas línguas alemã, francesa e inglesa, todas elas realizadas por Karl Hartl) tiveram como protagonistas actores sobejamente conhecidos (respectivamente, Hans Albers, Charles Boyer e Conrad Veidt) e nas provas em arquivo os protagonistas estão presentes em todas as imagens. As fotografias da versão alemã apresentam uma marca de impressão numérica.
#3. Um outro conjunto de imagens em tratamento era constituído por fotografias do filme
Ich und die Kaiserin (
Moi et l’Impératrice na versão em língua francesa,
The Only Girl na versão em língua inglesa). Problema: se é verdade que os atores representados na imagem são tantas vezes eloquentes para a sua descrição, como vimos no exemplo anterior, neste caso até esse elemento se revelou ser insuficiente, uma vez que Lilian Harvey (estrela alemã nascida no Reino Unido e igualmente fluente em francês) interpretou as três versões linguísticas… e não foi a única, também Mady Christians interpreta a Imperatriz tanto na versão em língua alemã como na versão em língua inglesa! Das imagens existentes no arquivo, duas representam a mesma cena em que Juliette (nome da personagem interpretada por Harvey) acende o “narguilé” à Imperatriz – numa delas, a atriz francesa Danièle Brégis, na outra Mady Christians. Ou seja: uma questão resolvida (identificação sem dúvidas da fotografia correspondente à versão francesa), outra por resolver (pela simples análise da imagem não foi possível atribuir a segunda imagem a uma versão linguística específica). A imagem de Lilian Harvey e Mady Christians apresenta uma marca de impressão no canto inferior direito: «56».
[i] À exceção, por exemplo, dos álbuns fotográficos, cujas fotografias podem abranger imagens das diferentes tipologias, de acordo com o gosto do colecionador ou a intenção da entidade produtora.
[ii] Esta introdução não foi apenas uma alteração tecnológica mas uma
transição que afetou todos os elementos do ecossistema (produção, distribuição, exibição, receção), envolvendo processos sociais e manifestando-se numa alteração das práticas culturais.
[iii] Portugal não ficou alheio ao fenómeno ou estratégia: em 1930, a companhia norte-americana Paramount instala-se em Joinville (França) para produzir versões em diversas línguas e a sua subsidiária portuguesa faz um recenseamento artístico em Portugal para a produção de versões em língua portuguesa. Desse “recenseamento” são selecionados os atores (Corina Freire, Raul de Carvalho, Ester Leão) que interpretariam
A Canção Do Berço, de Alberto Cavalcanti (versão em língua portuguesa do filme norte-americano
Sarah and Son, de Dorothy Arzner filmada e sonorizada nos estúdios Paramount em Joinville) e
A Dama Que Ri, do realizador chileno Jorge Infante (versão do filme
The Laughing Lady de Victor Schertzinger, igualmente filmada e sonorizada nos estúdios Paramount em Joinville).
[iv] Veja-se a fotografia de rodagem do filme
Melodie des Herzens (realização: Hanns Schwarz, 1929) em que, segundo a legenda aposta no verso da prova, «Willy Fritsch aprende a pronunciar a lingua
magyar».
[v] FRAGOSO, Fernando (1932), «A UFA trabalhou em Lisboa»,
Cinéfilo, nº 202, 2 de julho de 1932, p. 3-10.
[vi] Para dar um exemplo: em 1929, António Lopes Ribeiro inicia um périplo pela Europa (Paris, Berlim, Moscovo) com vista a aperfeiçoar os seus conhecimentos cinematográficos. Dessa viagem, trouxe inúmera documentação fotográfica que utilizou para ilustração de artigos em revistas especializadas portuguesas cujos acervos fotográficos foram entregues, pelo menos parcialmente, à guarda do fundador da Cinemateca.