Ora, outro aspecto que se pode verificar olhando para o primeiro como para qualquer outro número da revista é o seu apelo universal. Autores vindos de todos os quadrantes do planeta são convocados, reunindo-se traduções em francês de várias línguas, sendo justo destacar aqui uma: o português. Da mesma forma que o cinema nacional ocupou um lugar especial no pensamento de Daney, este encontra-se muito bem representado nas páginas da
Trafic, com textos de autores como João César Monteiro, o
habitué da revista Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, Pedro Costa, João Mário Grilo e João Bénard da Costa.
Filmes actuais são analisados em contiguidade com grandes clássicos. A urgência pessoal não conhece constrangimentos temporais. Ao mesmo tempo que Daney escreve pela milésima vez sobre o seu filme favorito,
Rio Bravo, aprecia a capacidade de solidão do cinema dos nossos dias. Menciona filmes que estão em sala, tais como
Céline de Jean-Claude Brisseau – obra que admira moderadamente – e o mais recente Oliveira. Fala, com incontido entusiasmo, acerca de “um dos mais sumptuosos e ambiciosos filmes dos últimos anos”:
Non ou a Vã Glória de Mandar. Escreve: “Manoel de Oliveira. Um homem como uma árvore (...), uma árvore como aquela do início do filme – um dos mais belos primeiros planos da história do cinema”.
A prosa crítica de Daney está cheia de “saltos de tigre” para o passado dados a partir de uma ideia quase benjaminiana de agora. Confidencia, no último texto que escreveu para a
Trafic, lançada já na sua ausência no Verão de 1992, que não consegue “boicotar o seu tempo e considerá-lo indigno de si”, como o faz habilmente o crítico Jacques Lourcelles, de quem analisa o seu magnífico
Dictionnaire du cinéma. Como escreveu Manoel de Oliveira no texto «Cher Serge Daney», publicado na
Trafic (n.º 37) de homenagem ao seu fundador, “Numa palavra, o cinema não foi, e nem sequer começou. O cinema é.” Daney também foi. Também assim
é, na sua eterna
maison cinéma.
Luís Mendonça
Co-editor e co-fundador do
À pala de Walsh
Investigador académico na FCSH/NOVA