“A razão quer que o poeta prefira a rima à razão…a ideia entra por essa porta feliz.”
Paul Valéry
Na génese do Jardim Universitário de Belas Artes (JUBA) estão duas personalidades que, embora com dimensão e peso diferentes, se revelam fulcrais na vida cultural portuguesa do século XX: Guilherme Filipe e José-Augusto França, este último com especial relevo na vertente cinematográfica. Em 1946 funda o Jardim Universitário de Belas Artes em Lisboa, que promoveu, entre outras atividades, a criação de uma orquestra sinfónica que se apresentou no Coliseu dos Recreios; debates sobre Arte e Filosofia na Sociedade Nacional de Belas Artes; uma homenagem a Egas Moniz pela sua consagração com o Prémio Nobel; sessões clássicas de cinema, as célebres “Terças-Feiras Clássicas” no Cinema Tivoli, com exibição de filmes comentados (sendo ele próprio um dos comentadores), entre outras manifestações e eventos. Nesse sentido, o JUBA cumpre o desígnio de acontecimento ou conjunto de acontecimentos unificados por um conceito estruturante, com impacto significativo na sociedade portuguesa da época.
No que diz respeito à vertente cinematográfica, ela materializou-se naquilo que ficou conhecido como “as terças-feiras clássicas” no cinema Tivoli e é aqui que entra a influentíssima personalidade de José-Augusto França. Como o próprio refere: “As iniciativas do JUBA estenderam-se ao campo cinematográfico com a promoção, de 1949 até finais dos anos 50, de sessões em matinés ditas das
terças-feiras clássicas no Tivoli, com programação que eu próprio (então crítico de cinema na
Seara Nova) elaborava na medida das disponibilidades do mercado de distribuição – e à falta de cineclubes então proibidos. Os filmes eram pessoalmente comentados, no palco, por intelectuais possíveis, também geralmente conotados com a esquerda liberal, por escolha de Guilherme Filipe e minha – e que, com os textos passados à Censura, eram particularmente vigiados”. É neste contexto que é produzido o texto sobre o qual hoje nos debruçamos.
Sabemos que Jorge de Sena escreveu dois textos diferentes sobre o filme “La Belle et la Bête / A Bela e o Monstro”, realizado por Jean Cocteau em 1941
[1]. Embora não tenhamos podido determinar com um grau de certeza absoluta se este foi um caso único na sua produção sobre cinema, tal facto sugere por si só uma profunda afinidade entre Sena, este filme em particular e a obra de Jean Cocteau em geral, afinidade que, de resto, é expressa neste texto em diversos níveis e camadas de sentido. Até termos outra notícia, assumimos como hipótese de trabalho que este é de facto um caso único, o que nos permite um reforço desse argumento.
Assim, o texto/palestra lido na sessão do JUBA realizada no Cinema Tivoli em 16 de outubro de 1951 encontra-se entre duas polaridades, que, esperamos poder demonstrá-lo, mais do que opostas, ou mais do que simplesmente opostas, são complementares. Por um lado, revela-se o Jorge de Sena polemista, capaz de zurzir com uma violência contida e subtil os “intelectuais e intelectualizantes” que compunham a paisagem e o ambiente cultural português desses finais dos anos 40 em termos que não deixam dúvidas sobre aquilo que a seu ver os caracterizava e se manifestava na forma como encaravam a obra de Jean Cocteau e menosprezo que lhe dedicavam; Sena não esconde, nem disfarça, o desdém que sente em relação à tacanhez, falta de visão e cosmopolitismo de pessoas que, reclamando-se guardiães dos cânones estético-culturais, recusavam reconhecer ao menos a singularidade de Cocteau e, quiçá, se sentiam ameaçados pela heterodoxia do seu projeto estético.
[1] O Mundo Literário, nº 45, 15/03/1947 e a Palestra que aqui se destaca.