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Assunto: Coleções
Data: 22/03/2018
Textos & Imagens 12
Textos & Imagens 12
O que é André Bazin? Obviamente, a pergunta não visa a identidade formal do autor; sabemos, e afirmámo-lo em texto anterior desta rubrica “Textos & Imagens” dedicado ao nº 1 da revista “Cahiers du Cinéma”, que é o mais importante e influente crítico e teórico do pós-guerra. A medida dessa importância e dessa influência é sobejamente conhecida, sobretudo entre os autores da Nouvelle Vague. Sobretudo, mas não só; basta que pensemos na plêiade de autores (já não autores de cinema, mas pensadores de cinema) que, dos dois lados do Atlântico, se reclamam seus herdeiros e também seus contestários. Aliás, a contestação é uma outra forma de reconhecimento, manifestando-se muitas vezes através de uma figura a que Harold Bloom chamou “angústia da influência” (ver “O Cânone Ocidental”).
                Assim, a pergunta inicial dirige-se a um núcleo de sentido que tem a sua origem no modo como jogou “o jogo das categorias”, entendendo-se “categorias” no sentido filosófico de conceitos e constelações de conceitos que criam zonas de discursividade progressivamente radicadas numa determinada cultura, fazendo evoluir o horizonte de inteligibilidade do(s) objecto(s) sobe os quais se debruçam. Utilizando uma expressão de Michel Foucault, a ordem do discurso de André Bazin inaugura aquilo a que mais tarde se chamaria “cinefilosofia”, ou seja de um tipo de pensamento que pesquisa a essência do cinema recorrendo à pura forma interrogativa da disciplina filosófica, a pergunta “o que é”, que remete para uma ontologia do cinema. Se dúvidas houvesse sobre a afirmação do ato fundador de uma reflexão filosófica sobre o cinema (apoiada em categorias e conceitos), bastaria a referência a uma dimensão ôntica do objecto para que todas essas dúvidas se dissipassem. No texto fundamental, datado de 1945[1], “Ontologie de l’image photographique”, Bazin expõe o seu postulado: “O cinema aparece como a realização no tempo da objetividade fotográfica”[2]. Evidentemente, a abordagem filosófica do cinema por André Bazin conhece um limite, que é também uma possibilidade: a sua relação com a realidade e é precisamente nessa relação com a realidade, ou melhor, é na teorização dessa relação entre o cinema e a realidade que se funda a reflexão filosófica. Até aqui, nada de muito relevante se pode extrair destas formulações; é um dado adquirido que o cinema regista mecanicamente a realidade e a reproduz também de um modo mecânico, numa relação documental. Aquilo que, a nosso ver, representa o salto quântico do pensamento de André Bazin é a crença na capacidade cinematográfica de, ao revelar o real, participar efetivamente no próprio ser do real. Dir-se-á que esta caracterização sumária do pensamento de Bazin carrega consigo um vocabulário tecnicamente filosófico, tomado de empréstimo à Ontologia, a mais grave e metafisicamente comprometida disciplina filosófica. Para dissipar essa impressão, dizemos que o vocabulário é o do próprio Bazin que, descendo ao nível da matéria, refere numa das mais luminosas páginas destes ensaios a principal qualidade do acto revelatório existencial do cinema: o facto de “tocar a carne e o sangue da realidade”[3]. É por isso que à montagem, que retalha e escamoteia o real, Bazin prefere o plano-sequência que deixa aflorar a vibração das coisas, o que nos faz pensar no imenso talento do acaso e na sua quota parte de responsabilidade na criação cinematográfica; se substituirmos “coisas” por “fenómenos” teremos uma outra perspectiva filosófica que o teórico não desdenharia: a abordagem fenomenológica, o real tal como (nos) aparece e se manifesta (perante a câmara). O que introduz ainda uma outra perspetiva correspondente a um âmbito de reflexão filosófica por excelência: a ética, pela qual mede as implicações morais do registo mecânico / técnico do qual refere a principal característica: a fidelidade. O neo-realismo, levado ao apogeu por Roberto Rossellini, fornece a Bazin um magnífico exemplo prático da sua teoria. Diferentemente das escolas artísticas que o precederam, o realismo do neo-realismo, na obra de Rossellini mais do que na obra de qualquer outro cineasta, reside menos nos temas que na estética, a acreditarmos no seu credo: “As coisas estão aí, porquê manipulá-las?”, pergunta o cineasta italiano. Para Bazin, o neo-realismo é uma tomada de consciência do real, que produz um novo tipo de imagem, a imagem-facto: “Sem dúvida a sua consciência, como toda a consciência, não deixa passar todo o real, mas a sua escolha não é lógica, nem psicológica: é ontológica no sentido que a imagem da realidade que nos é restituída permanece global”[4]. Essa tomada de consciência (um termo com uma longa carreira filosófica) produz um grão de realidade, “um acrescento de realidade no ecrã” [5].
 
[1] Utilizamos neste texto a compilação de ensaios Qu’est-ce que le cinéma ?, editada em 1990 pelas Éditions du Cerf, que constitui uma selecção de textos constantes da edição em quatro volumes, publicada em 1958 pela mesma editora e que se encontra disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca. De igual modo, encontram-se disponíveis as edições nas línguas portuguesa e inglesa desta versão reduzida.
[2] “Le cinéma apparaît comme l’achèvement dans le temps de l’objectivité photographique”, ibidem.
[3] “Le réalisme cinématographique et l’école italienne de la Libération”, ibidem.
[4] “Sans doute sa conscience, comme toute conscience, ne laisse-t-elle pas passer toute le réel, mais son choix n’est ni logique ni psychologique: il est ontologique en ce sens que l’image de la réalité qu’on nous restitue demeure globale”.
[5] “un plus de réalité sur l’écran”, ibidem.
O fervor com o qual foi recebido o pensamento baziniano é emblemático da filosofia do cinema, em particular da tradição crítica da revista “Cahiers du Cinéma”: os seus fiéis depositaram uma fé imensa no seu pensamento, portador de valores morais e criador de uma extraordinária foça simbólica. Eric Rohmer, talvez o seu herdeiro mais directo (não filmar senão aquilo que é), mediu, apaixonadamente, o impacto dessa teoria reflexiva. Bazin foi o primeiro a oferecer ao cinema a sua consciência: “À maneira de um explorador, Bazin entrega-se a uma verdadeira prospeção no interior do ser do cinema”[1]. Santificando a objetividade cinematográfica, Bazin não realizou nada menos do que uma “revolução coperniciana, análoga à que Kant realizou em filosofia. Copérnico deslocou a perspetiva da Terra em direcção ao Sol, Kant do objecto ao sujeito, e Bazin, inversamente, do sujeito ao objecto”[2]. Dessa adoração do ser puro do cinema à religião de um cinema de autor auto-produzido, em rutura com forças profissionais, económicas, políticas e ideológicas, não foi mais do que um passo.

Arnaldo Mesquita

Qu'est-ce que le cinéma ? / André Bazin. Paris : Les Éditions du Cerf, 1990
Tipologia documental: livro
Cota: 623
 
[1] ROHMER, Éric, “La «Somme» d’André Bazin”. In Le Goût de La Beauté, Paris, Cahiers du Cinéma, 1984. Este volume encontra-se disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca.
[2] “[…) une révolution à la Copernic, analogue à celle que Kant accomplit en philosophie. Copernic a déplacé la perspective de la Terre vers le Soleil, Kant de l’object vers le sujet, et Bazin, à l’inverse, du sujet vers l’objet”. Ibidem.