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Assunto: In Memoriam
Data: 19/01/2023
Elogio de Paul Vecchiali
Elogio de Paul Vecchiali
O caso Paul Vecchiali (1930-2023) é sério e pluralmente invulgar, na singularidade, na diversidade, na independência, na liberdade do longo curso contado dos anos 1960 contemporanêos da Nouvelle Vague aos dias de ontem (de 2022, Pas… de quartier surge como último título acabado, sessenta exactos anos após um primeiro filme, Les Roses de la vie). Realizador-produtor francês não alinhado, e também crítico, argumentista, encenador, escritor, actor… Vecchiali foi praticante de uma cinefilia que teve por centros passionais o cinema popular francês dos anos 1930, Danielle Darrieux, entre as actrizes, Jean Grémillon entre os cineastas muito amados. Percorreu o seu caminho à margem dos movimentos mais reconhecíveis, numa discrição pública que muitas vezes destoou da originalidade explosiva de muitos dos seus filmes, realizados em diálogo com o seu tempo mas também, sempre, com a História do cinema.
Incidindo em particular no melodrama, no musical, no policial, as suas variações “de género” estão de acordo com a ideia de que “a modernidade é a revisitação do clássico tocado pelo vírus”, não contemporizando com a repetição, e procurando, na integridade artística, o risco da reinvenção permanente. A máxima que norteou a actividade da produtora Diagonale, base do seu trabalho a partir de meados dos anos 1970, com um círculo de cúmplices por vezes envolvidos em “projectos consanguíneos”, declara o princípio: “Viver no cinema ‘em diagonal’.” Certa vez adiantou que podia descrever-se como “um cineasta proletário”: “Tenho a cabeça na Nouvelle Vague e o coração no cinema francês dos anos 30: não posso interessar-me por um filme se não estiver muito ligado às personagens. Faço parte dos cineastas que servem as personagens e os sentimentos em contraponto àqueles que se servem dos sentimentos, das personagens.” É o que move e comove em Les Ruses du Diable (1965), “meio Demy, meio Godard”, numa formulação de Louis Skorecki, pelo qual François Truffaut designou Vecchiali como “o único herdeiro de Renoir”; Femmes, Femmes (1974), que Pasolini viu como uma revelação e se tornaria o título de um pequeno culto; En haut des marches (1983), em que dirigiu Darrieux, e seria admirado por Anne-Marie Miéville e Jean-Luc Godard que tanto reparou nos planos sequência de Once More (1987) e não poupou no elogio a À Vot’bon coeur (2003), referido como “um pequeno milagre”. E há, lembrando apenas outros dois filmes, a perturbação clínica de La Machine (1977) ou a melomania romanesca em visão amor fou de Corps à coeur (1978).
“Corações à flor da pele” seria uma boa expressão para mencionar a entrega de Paul Vecchiali, a solidez da posição, a paixão pelo cinema que transmitia vez após vez quando acompanhava as projecções dos seus filmes trazendo consigo a delicadeza do mundo. Aconteceu em Lisboa, em 2017, quando a Cinemateca e o IndieLisboa organizaram em conjunto uma retrospectiva que quem teve oportunidade de seguir sabe ter sido um bom momento.
 
Maria João Madeira
18 de Janeiro de 2023