CICLO
A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque


A habitual parceria entre a Cinemateca e o Doclisboa concretiza-se este ano através da co-programação de uma retrospetiva dedicada ao cinema do Quebeque (incluindo o documentário e alguma ficção nascida do documentário) desde os finais dos anos cinquenta até hoje, ou seja, cobrindo aquilo que, grosso modo, é a história desse cinema como polo cinematográfico com forte identidade própria.
Esta é uma cinematografia que, nestas salas, tendo embora estado presente com alguma frequência, não chegou a ser alvo de um panorama histórico. Porquê, então, a vontade comum deste foco e desta abrangência? Antes de mais porque, qualquer que seja a visão que tenhamos sobre ela, não é possível fazer uma história do documentário sem abordar o polo local do Cinema Direto dos inícios de sessenta, altura em que toda a história dessa revolução passava obrigatoriamente pela obra de Jean Rouch, pelos americanos da Drew Associates e pela comunidade de cineastas canadianos reunidos na ONF (Office National du Film), sobretudo francófonos, embora, em vários momentos, não em exclusivo. Nesse período, o Quebeque foi um dos três elos fundamentais de uma cadeia de experiências que, no fundo, eram uma só, e que como tal foram muitíssimo comunicantes (como se constata não só pelos contactos dos quebequenses com o grupo estadunidense mas também, por exemplo, pelas ligações dos primeiros com Rouch e em particular pela contribuição decisiva dada por Michel Brault à obra do autor francês). Pesem embora os diferentes prolongamentos que os respetivos contextos geraram, pesem embora as variantes e mesmo as polémicas internas entre as equipas dos dois polos do continente americano, houve, entre eles, um impulso comum e um sentimento de partilha, razão pela qual se lhes pode aplicar com rigor um termo único (“cinema direto”, muito mais adequado do que a suposta separação por vezes estabelecida entre Rouch e os outros por via da errada leitura do termo “cinema-vérité”). Para o polo canadiano, esse foi então o momento de efervescência - o momentum - que, com alguma precisão, devemos situar entre 1958 e os meados da década de sessenta, e que surgiu de resto (como aconteceu com os outros de modo ainda mais flagrante) na sequência de obras mutantes ao longo da década de cinquenta. Por outro lado, foi nesse período de intensa experimentação que o cinema desta província deu quase todos os grandes saltos que, por alguns anos, o vieram a colocar com relevância no mapa do cinema internacional, incluindo e ultrapassando a contribuição para o “direto”: em 1963, o salto para a produção documental de longa-metragem com o filme-marco essencial POUR LA SUITE DU MONDE, do par Brault/Perrault; nesse mesmo ano e no ano seguinte, o salto para as longas de ficção com os também fundamentais À TOUT PRENDRE, de Claude Jutra, e LE CHAT DANS LE SAC, de Gilles Groulx – o princípio de uma ficção nascida da técnica e da metodologia do Direto, num trânsito que não se deu apenas neste cinema e que um dos maiores investigadores dele, G. Marsolais, rotulou iconicamente de “polinização da ficção”; finalmente, e de modo ainda mais geral, o salto para um cinema nacional que, insiste-se, ganhou identidade própria, e que, no próprio terreno industrial, começou a emancipar todo o Canadá da sua crónica proximidade (e inferioridade) em relação ao cinema hollywoodiano.
Nada disto teria porém sido o que foi se estas experiências de cinema não tivessem coincidido com o acordar de uma região. Sendo verdade que o esfoço de desenvolvimento do documentário canadiano tinha já tido um marco com a fundação do NFB – National Film Board (ou ONF - Office National du Film) em 1939 sob a direção de J. Grierson (uma novidade que até aí não tinha estado na origem de grandes contribuições históricas, porventura com a única exceção, muito relevante, da obra canadiana de N. McLaren), a agulha que despoletou outro rumo foi a mudança do organismo de Otava para Montréal em 1956 e as tensões que aí vieram a surgir entre cineastas anglófonos e francófonos. Começando por partilhar experiências comuns ainda lideradas pela comunidade anglófona (foi o caso da série “Candid Eye” feita para a televisão em 1958-60), um grupo de cineastas francófonos (não formados pela ONF) entrou rapidamente em polémica com os restantes, afirmando-se perante eles tanto pela revolta contra um documentário que consideravam pomposo e académico como pela invocação da realidade social e cultural da sua região, até aí secundarizada. Por trás do momentum do cinema quebequense estava então sobretudo esta “equipa francesa” da ONF, e por trás dela o despertar de um espírito de nação, com todos os seus correlativos económicos (a “revolução tranquila” dos inícios da década de sessenta), políticos (o crescimento gradual do movimento nacionalista e da vertente radicalizada dele até à “crise de Outubro” de 1970, os prolongamentos disso até ao plebiscito de 1980…), e de busca de identidade (a procura antropológica das raízes, o contacto com as comunidades autóctones, a referência à construção demográfica da região…). Foi a coincidência destes planos que esteve na base de todos aqueles saltos, e foi este contexto de emancipação e de análise coletiva que acabou por marcar objetos filmados e linhas temáticas de muito do que se fez naqueles inícios e depois. 
O programa que elaborámos em conjunto abarca então a fase de arranque de todo este percurso – as obras seminais de viragem de cinquenta para sessenta e dos inícios da década de sessenta, no campo do documentário -, o momento em que daí se parte para um novo tipo de ficção, e, depois, filmes marcantes de todas as décadas seguintes, nos quais se prolonga e renova o ímpeto original. Incluem-se marcos históricos de muitos realizadores fundamentais, e, sobretudo, exemplificam-se as principais vertentes do conjunto: documentários políticos e sociais que abordam a história contemporânea da província; (mais pontualmente) filmes que retomam a tradição viajante e universalista da grande história do documentário internacional; documentários antropológicos, tanto sobre os povos autóctones (neste caso quase sempre em articulação com as questões políticas da sua sobrevivência e integração) como sobre a população “moderna”, de raiz europeia, a braços com a sua própria questão identitária; documentários sociológicos, em que o mais banal quotidiano esconde sempre a introspeção coletiva, e onde perpassam as questões da construção demográfica e, não raro, do exílio; filmes-ensaio modernos confrontando o quotidiano com a matéria da história e do próprio cinema – numa afirmação clara de que já se fechou um longo ciclo que hoje se confronta também consigo próprio.
Finalmente, assinale-se a estrutura mista de cronologia e de associações temáticas (rompendo portanto com a mera ordem cronológica, e assim privilegiando rimas internas, choques, associações), e o facto de serem incluídos alguns grandes clássicos do (grande) cinema de animação do Quebeque, os quais, contra uma tendência frequente, quisemos justamente não isolar em capítulo autónomo.
 
19/10/2017, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

The Days Before Christmas | Les Raquetteurs | Les Désoeuvrés
duração total da projeção: 122 min | M/12
19/10/2017, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Normetal | Richesse des Autres
duração total da projeção: 111 min | M/12
19/10/2017, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

À Saint Henry le 5 Septembre | La Lutte | Bûcherons de la Manouane
duração total da projeção: 95 min | M/12
 
19/10/2017, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Le Paysagiste | La Theorie du Tout | Le Beau Plaisir
duração total da projeção: 100 min | M/12
 
19/10/2017, 22h00 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Very Nice, Very Nice | 21-87 | A Trip Down Memory Lane | Entre Tu et Vous
duração total da projeção: 92 min | M/12
19/10/2017, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Em colaboração com o Doclisboa, com o apoio do Office National du Film du Canada / National Film Board of Canada e da Cinémathèque Québécoise
The Days Before Christmas | Les Raquetteurs | Les Désoeuvrés
duração total da projeção: 122 min | M/12
Ruptura - Debates de Cinema
THE DAYS BEFORE CHRISTMAS
de Stanley Jackson, Wolf Koenig, Terence Macartney-Filgate
Canadá, 1958 – 34 min / legendado eletronicamente em português
LES RAQUETTEURS
de Michel Brault, Gilles Groulx
Canadá, 1958 – 15 min / legendado em português e inglês
LES DÉSOEUVRÉS
de René Bail
Canadá, 1959 – 73 min / legendado em português e inglês

Em 1958 Michel Brault, durante a rodagem de THE DAYS BEFORE CHRISTMAS (integrado na série “Candid Eye” e filmado em grande parte com teleobjetiva), ganha consciência da possibilidade de um outro cinema, feito com câmara à mão e grande angular, feito no coração e no movimento dos acontecimentos. Responde com LES RAQUÉTTEURS, considerado um sinal de partida para o Cinema Direto no Quebeque. Quase simultaneamente, René Bail realiza LES DÉSOEUVRÉS (invisível durante décadas até ser recuperado em 2007), antecipando uma tradição ainda por inaugurar: o trabalho ficcional que incorpora métodos e técnicas do Cinema Direto
19/10/2017, 18h30 | Sala Luís de Pina
A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Em colaboração com o Doclisboa, com o apoio do Office National du Film du Canada / National Film Board of Canada e da Cinémathèque Québécoise
Normetal | Richesse des Autres
duração total da projeção: 111 min | M/12
Workers Unite! / Trabalhadores Uni-Vos!
NORMETAL
de Gilles Groulx
Canadá, 1959 – 17 min / legendado em português e inglês
RICHESSE DES AUTRES
de Maurice Bulbulian, Michel Gauthier
Canadá, 1973 – 94 min / legendado em português e inglês

RICHESSE DES AUTRES é um dos grandes exemplos de filmes políticos feitos no Quebeque na década de setenta, inscritos na longa tradição do documentário militante. No Quebeque e no Chile, os trabalhadores das minas lutam por reconhecimento e condições de dignidade. Em ambos os países, os governantes descredibilizam a luta, perpetuando um estado de injustiça social e económica - no Chile, Salvador Allende, no Quebeque, René Levesque - líder e fundador do Parti Quebecois (que intervém na obra de Perrault, UN PAYS SANS BON SENS). NORMÉTAL é uma das cidades mineiras em luta. A mesma que Gilles Groulx filmara em 1959, entre os homens no subsolo e a vida à superfície, num documento de grande valor histórico.
 
19/10/2017, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Em colaboração com o Doclisboa, com o apoio do Office National du Film du Canada / National Film Board of Canada e da Cinémathèque Québécoise
À Saint Henry le 5 Septembre | La Lutte | Bûcherons de la Manouane
duração total da projeção: 95 min | M/12
Direct Cinema in Quebec / O Cinema Direto no Quebeque
À SAINT HENRY LE 5 SEPTEMBRE
de Hubert Aquin
Canadá, 1962 – 41 min / legendado eletronicamente em português
LA LUTTE
de Claude Jutra, Michel Brault, Marcel Carrière, Claude Fournier
Canadá, 1961 – 27 min / legendado eletronicamente em português
BÛCHERONS DE LA MANOUANE
de Arthur Lamothe
Canadá, 1962 – 27 min / legendado eletronicamente em português

Sessão que abre três das grandes linhas temáticas do cinema desta época: a vida urbana (24h na vida do bairro operário de Saint-Henry, em Montréal, no primeiro dia de escola), o desporto (a luta profissional, entre um torneio no Forum de Montréal e os salões clandestinos), as comunidades isoladas numa natureza dura (no outono e inverno, os lenhadores trabalham numa floresta nevada). Três filmes em que a portabilidade do equipamento, o som síncrono, a imersão nos espaços-tempos filmados (ou seja, a linguagem do Cinema Direto) constroem, de maneiras muito diversas, retratos de enorme força poética. Segunda exibição em novembro.
 
19/10/2017, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Em colaboração com o Doclisboa, com o apoio do Office National du Film du Canada / National Film Board of Canada e da Cinémathèque Québécoise
Le Paysagiste | La Theorie du Tout | Le Beau Plaisir
duração total da projeção: 100 min | M/12
Gestures and Landscapes / Gestos e Paisagens
LE PAYSAGISTE
de Jacques Drouin
Canadá, 1976 – 7 min / legendado em português e inglês
LA THEORIE DU TOUT
de Céline Baril
Canadá, 2009 – 78 min / legendado em português e inglês
LE BEAU PLAISIR
de Bernard Gosselin, Michel Brault, Pierre Perrault
Canadá, 1968 – 15 min / legendado em português e inglês

A paisagem concretiza-se e persiste em diferentes modos de relação entre a natureza e o humano. Nesta sessão viajamos da imersão entre a paisagem e o inconsciente no clássico de animação com ecrã de agulhas LE PAYSAGISTE, até à construção comunitária em torno da tradição da pesca do golfinho, em LE BEAU PLAISIR (um filme que revisita gentes e lugares de POUR LA SUITE DU MONDE, de novo no mais puro cinema direto). Entre os dois, damos a ver LA THÉORIE DU TOUT, um filme que se constrói na busca do encontro entre as imagens dos lugares e as memórias dos seus habitantes, procurando o acordo entre palavras, gestos e recordações individuais, mapeando território, registando o seu imaginário. Segunda exibição em novembro.
 
19/10/2017, 22h00 | Sala Luís de Pina
A Cinemateca com o Doclisboa | Uma Outra América: O Singular Cinema do Quebeque

Em colaboração com o Doclisboa, com o apoio do Office National du Film du Canada / National Film Board of Canada e da Cinémathèque Québécoise
Very Nice, Very Nice | 21-87 | A Trip Down Memory Lane | Entre Tu et Vous
duração total da projeção: 92 min | M/12
Inventing Freedom / Inventar Liberdade I
VERY NICE, VERY NICE
de Arthur Lipsett
Canadá, 1961 – 7 min / legendado eletronicamente em português
21-87
de Arthur Lipsett
Canadá, 1964 – 9 min / legendado eletronicamente em português
A TRIP DOWN MEMORY LANE
de Arthur Lipsett
Canadá, 1965 – 12 min / legendado eletronicamente em português
ENTRE TU ET VOUS
de Gilles Groulx
Canadá, 1969 – 64 min / legendado em português e inglês

Sessão dedicada a ensaios cinematográficos que associam a experimentação da linguagem fílmica à crítica da sociedade moderna. De Lipsett, três filmes dos seus inícios: um jogo entre imagens fotográficas e montagem sonora revela estados de ansiedade recalcados, a crítica a uma sociedade dominada por consumo e máquinas (21-87, onde George Lucas encontrou a ideia de The Force), e um filme-cápsula temporal, em que o passado é apresentado enquanto caos enlouquecedor. O filme de Groulx, construído coletivamente, usa sete sequências na vida de um casal para ilustrar e criticar a sociedade de consumo e a representação da modernidade.