CICLO
Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço


Somos muitos a dever muito a este homem, e este ciclo e esta exposição surgem antes de mais para lembrar isso mesmo. “Somos muitos”, quem? Desengane-se quem leia isto apenas como “nós, portugueses”, pensando no amor que o homenageado tem por este país e parte das suas gentes – ele que já se autodefiniu como tendo “um estado de espírito eslavo, uma nacionalidade francesa e um coração português” – ou pelo património que aqui deixou, agora reunido em Melgaço. Não, não é de todo apenas isso aquilo em que estamos a pensar ou a que se resume este tributo. Cineastas de muitos cantos do mundo devem-lhe a rara divulgação dos seus filmes em centros de projeção internacional, e a cultura europeia deve-lhe obra vasta em que haverá sempre que referir, pelo menos, o trabalho desenvolvido no Festival de La Rochelle e no Centro Pompidou, o legado da secção “Caméra d’Or” do Festival de Cannes, o insubstituível Dicionário Larousse/Cinéma e muitas páginas de crítica em periódicos como Combat, Le Quotidien de Paris, Études Cinématographiques ou Jeune Cinéma. Mas, por outro lado, como poderíamos de facto esquecer essa viagem e essa viragem sem retorno que, entre vários périplos europeus e a partir do convívio com os imigrantes portugueses dos “bidonville” de Paris nos anos de 1968-70, trouxe Jean-Loup Passek a Portugal onde acabou por erguer duas casas e deixar todas as suas coleções? Se isto não é portanto o único objeto ou horizonte da iniciativa, é um bom ponto de partida para ela – um ponto de partida justo e lógico, também nascido do reconhecimento e da amizade. Passek escolheu-nos, e é mais do que tempo de a Cinemateca lhe prestar tributo, dividindo esse tributo – como única forma, aliás, de que tal faça sentido para o próprio homenageado – pela figura e pela obra, e tanto pela obra global como pelo repositório, pessoalíssimo e romanticíssimo, que é hoje o Museu de Melgaço. Entre a objetividade e o romantismo temos muito para escolher, e esta iniciativa nasce de tudo isso e é feita de tudo isso, com explícita vontade de nada separar.
Rebobinemos. Nascido em França em 1936 numa família de origem eslava (de pais “de origem polaca ou russa conforme as vicissitudes da história”), depois de um curso liceal em Paris e de uma licenciatura na Sorbonne em história e geografia, Jean-Loup Passek marcou o seu destino no exato dia em que faltou às provas do concurso de professorado para ir ver... CITIZEN KANE. A predisposição para isso tinha começado uns anos antes, especialmente quando conhecera a atividade do Studio de Montparnase e as “terças-feiras clássicas” aí animadas por Jean-Louis Chéray. Algures no seu percurso formativo ou pré-profissional, contam-se também estudos num mosteiro beneditino na região de Morvan e uma estada de dois anos na Argélia – referências soltas, respigadas de pontas de entrevistas que verdadeiramente nunca quis dar mas enquadráveis com óbvio sentido no seu trabalho futuro. Quanto ao percurso profissional, refira-se então antes de mais o trabalho nas edições Larousse, onde entrou em 1963 como responsável do departamento de espetáculos (assinando porém entradas na enciclopédia que extravasam esse campo), e onde, no seguimento de proposta sua, veio depois a dirigir a obra imensa que é o Dictionnaire du Cinéma, publicado até hoje em sete edições, entre 1985 e 2014. Em 1970 (agora pela mão de Jean-Louis Bory) foi a vez de entrar no mundo dos festivais, primeiro como colaborador em Royan, depois como fundador e diretor do Festival International du Film de La Rochelle (sucessor do primeiro), que animou de 1973 a 2001. Em 1978 tornou-se Conselheiro de Cinema do recém-inaugurado Centro Pompidou, em Paris, onde se manteve também até 2001 e onde veio a supervisionar (ou dirigir pessoalmente) três dezenas e meia de grandes retrospetivas e outros tantos catálogos, muitos dedicados a cinematografias nacionais menos conhecidas (cinema checo e eslovaco, húngaro, polaco, jugoslavo, português, turco, grego, arménio, georgiano, chinês, indiano, coreano, australiano, mexicano, cubano, da “Ásia central Soviética, etc., etc.). Pela mesma altura (1978) foi ainda convidado para coordenar a secção “Caméra d’or” do Festival de Cannes, destinada a impulsionar a carreira inicial de novos realizadores, onde se manteve até 2002.
Há nestas várias frentes uma óbvia coerência e duas ou três linhas de força. Dar a ver, dar a conhecer, contra cânones estabelecidos, gavetas ou fronteiras histórias (incluindo nisso a ideia, quase axiomática para a sua geração, de uma fronteira radical entre a Nouvelle Vague e muito cinema francês anterior), eis o que terá sido o traço unificador, marcado portanto pelas ideias de abertura e de desierarquização. Dentro dele, Jean-Loup Passek fez sua a missão de trazer aos centros da cinefilia os tais autores aí desconhecidos, ou vistos como periféricos, destacando ainda o que considerava criação genuína face à simples “moda” – missão de que bem podemos evocar os exemplos de Manoel de Oliveira e António Campos, Oliveira que teve em La Rochelle a sua primeira homenagem em França, em 1975, Campos que nunca se cansou de sublinhar que a retrospetiva nesse festival, em 1994, fora a única que lhe tinha sido dedicada fora do seu país. “Sou pela curiosidade total” (“Je suis pour la curiosité tout azimut”) disse a certo passo, ele que também teorizou sobre as vantagens do ecletismo, ou seja, “uma das grandes virtudes que mais faltam ao ‘honnête homme’ deste fim do século XX” (“Podem dizer que o ecletismo é a primeira etapa da superficialidade, eu acho pelo contrário que é o caminho mais curto para a lucidez, naturalmente na condição de sermos espectadores ativos do mundo e não testemunhas passivas que não param de vender a alma a toda a espécie de manipulação mediática”; “[O ecletismo] é também afirmar o nosso espírito de comparação para melhor rejeitar o de competição”). De la Rochelle ao Pompidou, foi isto que o moveu, defendendo uma independência programática identitária e idiossincrática: “Não a um festival competitivo, (…) não a um festival “sob influência”, “a nossa liberdade é total”… Junte-se a isso a sua lendária obsessão pelo rigor dos dados e a sua resistência à mecanização da escrita (todo o Dicionário Larousse era revisto e verificado pessoalmente, letra a letra, número a número, e tudo o que aí escreveu e reviu fê-lo manualmente, sem recurso a meios mecânicos) e teremos uma primeira aproximação à obra, senão já, obviamente, ao homem.
E Portugal? Como dito acima, tudo começa no período 1968-70 junto da comunidade imigrante da região parisiense. Aí entrando também pelo cinema (com eles realiza cinco ou seis filmes de média metragem, hoje considerados perdidos), acaba por ficar pelas pessoas, criando alguns dos laços de amizade mais perenes de toda a sua vida desde então. Por esses laços vem a aprender a língua e a descobrir o território, onde vem a construir duas casas, no Minho e na costa atlântica (“desconfio como da peste de ser visto como um estrangeiro que não conhece nem a língua nem o país”). Vive portanto uma história paralela num país de adoção, história que se desenrola autonomamente do exercício profissional mas que preserva como algo essencial, em muitos aspectos central, e que por isso mesmo vem a ter um corolário inesperado (ou, para quem o conhecia, expetável e sonhado) através da criação do “seu” museu de Melgaço. Dádiva de Jean-Loup Passek a uma região e uma vila, gesto (ele próprio admirável) de uma vila que correspondeu ao desafio, o Museu de Cinema de Melgaço alberga hoje todas as coleções de documentos, iconografia e objetos de cinema por ele reunidas ao longo de décadas, entre as quais se destacam o importante acervo de cartazes originais, o imenso acervo fotográfico e a coleção de pré-cinema. É o museu improvável no lugar perfeito, pequeno por vocação, remoto por vocação, a festejar um encontro com um território (nos precisos lugares em que esse encontro primeiramente se deu) e com pessoas concretas dentro dele.
A homenagem dupla que agora se leva a cabo – ao homem e ao museu – consta de um Ciclo de uma vintena de filmes e uma exposição de cartazes de cinema originais. Se nesta última optámos por exemplificar duas das áreas mais fortes da coleção (o cinema clássico francês e o cinema – e a escola gráfica de cartazes – da Polónia), o Ciclo, esse, procura justamente espelhar, não apenas um gosto mas a abertura e a diversidade que marcaram o trabalho difusor de Passek. Englobando prioritariamente títulos recolhidos da lista dos “cem filmes” preferidos por Jean-Loup Passek (feita para a Cinemateca Portuguesa nos anos noventa), acrescentando-lhes títulos pontuais representativos de cumplicidades várias (como a do produtor e distribuidor Marin Karmitz, que prontamente quis dar o seu apoio ao museu, tomando ele próprio a iniciativa de estar presente na inauguração desta mostra), procurámos combinar obras do cânone cinematográfico mais consolidado com obras muito menos conhecidas e, também, obras das cinematografias que Jean-Loup Passek mais terá contribuído para divulgar, com sejam as de países da Europa de Leste (Polónia, República Checa, Hungria, ex-União Soviética), ou asiáticos (neste caso Bangladesh). Uma viagem breve pelos continentes cinematográficos que Passek habitou, não deixando de evocar a relação especial que estabeleceu com algum cinema português através dos filmes de António Campos e Manoel de Oliveira.
Erguida a partir do mundo de Passek, a iniciativa é realizada com a inestimável colaboração da Câmara Municipal de Melgaço e contou também na sua preparação com a ajuda fundamental de Bernard Despomadères (ex-adido cultural junto do Instituto Francês de Portugal no Porto, adjunto de Jean-Loup Passek na direção científica do Museu e ele próprio figura central na história das relações culturais entre os dois países). Ao homenageado (no ano do seu octogésimo aniversário e numa altura em que razões de saúde não lhe permitem deslocar-se a Lisboa), aqui exprimimos o nosso profundo agradecimento e daqui enviamos a nossa calorosa saudação. À Câmara Municipal de Melgaço, nas pessoas do seu Presidente Manuel Batista Pombal, da Vereadora da Cultura Maria José Codesso e da Responsável pelos Serviços Culturais Angelina Esteves, agradecemos o pronto acolhimento da iniciativa e toda a cooperação necessária para a levar à prática. A Bernard Despomadères, aqui deixamos também o nosso grande obrigado.
09/09/2016, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Morte a Venezia
Morte em Veneza
de Luchino Visconti
Itália, 1970 - 131 min
12/09/2016, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Le Jour se Lève
Foi uma Mulher que o Perdeu
de Marcel Carné
França, 1939 - 89 min
13/09/2016, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Vilarinho das Furnas
de António Campos
Portugal, 1971 - 77 min | M /12
13/09/2016, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Intimi Osvetleni
“Luz Íntima”
de Ivan Passer
Checoslováquia, 1965 - 90 min
 
14/09/2016, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

I am Josh Polonsky’s Brother
de Raphael Nadjari
Estados Unidos, 2001 - 87 min
 
09/09/2016, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Em colaboração com a Câmara Municipal de Melgaço
Morte a Venezia
Morte em Veneza
de Luchino Visconti
com Dirk Bogarde, Silvana Mangano, Bjorn Andressen, Mark Burns
Itália, 1970 - 131 min
legendado em espanhol | M/12
com a presença de Marin Karmitz, Bernard Despomadères
Uma obra-prima de Visconti adaptada de uma novela de Thomas Mann. História de envelhecimento e decadência onde as pessoas morrem numa cidade também ela moribunda sob os efeitos da peste, e onde um chefe de orquestra envelhecido se apaixona pela imagem de um jovem efebo no luxuoso hotel de Veneza onde se encontra. “You must never smile like that. You must never smile like that to anyone. I love you.”
12/09/2016, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Em colaboração com a Câmara Municipal de Melgaço
Le Jour se Lève
Foi uma Mulher que o Perdeu
de Marcel Carné
com Jean Gabin, Jules Berry, Arletty
França, 1939 - 89 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Esta obra amarga e desesperada marca o apogeu do chamado “realismo poético” francês. Carné lembrou-se nitidamente do cinema alemão mudo e de Sternberg para criar a atmosfera do filme, com extraordinários cenários de Alexandre Trauner e uma fotografia cheia de sombras e contrastes, num filme cuja ação se passa quase sempre à noite. Encurralado no seu quarto pela polícia, Jean Gabin, um honesto operário que matou um patife, revive a sua história, numa série de flashbacks. Quando o despertador toca de manhã à hora habitual, não marca o começo de um novo dia de trabalho, marca a hora da sua morte. Um dos grandes desempenhos deste ator “minimalista”, que explodia em bruscos acessos de cólera ou de revolta. A apresentar em cópia digital. 
13/09/2016, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Em colaboração com a Câmara Municipal de Melgaço
Vilarinho das Furnas
de António Campos
Portugal, 1971 - 77 min | M /12
"Morreu Vilarinho das Furnas sob o manto da água que lhe deu a vida". Se, neste filme de António Campos, o rio não é presença constante, a água é a grande ameaça e é ela que mata a aldeia de Vilarinho das Furnas quando da construção da barragem que a submergiu inteiramente. "Um filme cruamente realista" (José Manuel Costa) que ultrapassa essa dimensão para "se transformar, por inteiro, numa gigantesca metáfora. Chegados ao fim... é impossível não pensar que António Campos está de facto a falar do afundamento de um país" (José Manuel Costa).
13/09/2016, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Em colaboração com a Câmara Municipal de Melgaço
Intimi Osvetleni
“Luz Íntima”
de Ivan Passer
com Vera Forman, Zdenek Besuska, Karel Blazek
Checoslováquia, 1965 - 90 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Ivan Passer foi o argumentista de dois dos filmes mais célebres da Nova Vaga checa, OS AMORES DE UMA LOIRA e O ÁS DE ESPADAS, ambos de Milos Forman, antes de se estrear na realização. “LUZ ÍNTIMA” impôs o seu nome como um dos cineastas mais importantes da sua geração na Europa Central. Esta história de um jovem que se lembra dos prazeres simples foi definida pelo realizador como “uma variação musical sobre a busca da felicidade”. Jean-Louis Bory viu neste filme “um cinema humilde, no mais belo sentido da palavra, em que a câmara anima a prosa do mundo”. A apresentar em cópia nova digital, correspondente a um restauro muito recentemente apresentado.
14/09/2016, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Pela Curiosidade Total Homenagem a Jean-Loup Passek e ao Museu de Cinema de Melgaço

Em colaboração com a Câmara Municipal de Melgaço
I am Josh Polonsky’s Brother
de Raphael Nadjari
com Richard Edson, Jeff Ware, Meg Hartig
Estados Unidos, 2001 - 87 min
legendado eletronicamente em português | M/12
A segunda longa-metragem de Raphael Nadjari, realizador de origem franco-israelita, foi rodada nas ruas de Nova Iorque, em Super 8 mm. Pelo cenário, mas também pela escolha do suporte – que Nadjari justificou como “ideal” para a nostalgia dos anos setenta vivida pelas suas personagens – é uma visita ao coração do cinema independente americano, interpretada por um rosto (Richard Edson) bem conhecido dos filmes de Jarmusch, Sara Driver ou Kathryn Bigelow. Ambientado numa comunidade judaica novaiorquina, traça o percurso do “irmão de Josh Polonsky”, que quer perceber porque é que ele foi assassinado. Primeira exibição na Cinemateca.