CICLO
Portugal 1974 - Um sítio que não existe, um tempo que verdadeiramente existiu


A formulação é de Robert Kramer, aplicada, no futuro dos hoje idos anos 1990, ao Portugal revolucionário dos anos 1970 pós-Abril. O país saía de quarenta e oito anos de treva ditatorial, enredado, desde 1961, numa guerra em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique que “a metrópole” colonial chamava “do Ultramar” e os africanos nomeavam no plural pela independência dos povos, “de Libertação”. O cineasta americano foi um dos muitos estrangeiros a viajar para o país do extremo ocidental da Europa atraído pela “revolução dos cravos”, que seria fotografada e filmada desde os primeiros dias de liberdade. Logo no coletivo AS ARMAS E O POVO, rodado entre o 25 de abril e 1 de maio de 1974, pelas várias equipas portuguesas que se organizaram, são do brasileiro Glauber Rocha as vivas entrevistas de rua, a homens e mulheres, nas quais a montagem encontrou a estrutura do filme.
Era o tempo da muita energia, da muita alegria, da experiência coletiva, de uma ideia de comunidade a construir com militares, operários, camponeses, pescadores, intelectuais, artistas. O tempo da efervescência de que os protagonistas desses “olhares estrangeiros” falam como o de “um movimento revolucionário espantoso em que o exército empurrava um país para a esquerda” (Dominique Issermann), numa “situação de felicidade nacional”, “Portugal naquele momento era a materialização de um sonho” (Sebastião Salgado). “Era de uma liberdade imensa na cabeça das pessoas e na linguagem” (Lélia Salgado). “[Em Portugal] o ex-exército colonial português cometia um suicídio.” (Thomas Harlan) “Não era só uma classe de intelectuais revolucionários ou um grupo de radicais ou de profissionais liberais. Não era uma questão racial como nos EUA, o movimento negro ou latino.” “Eu vivi essa experiência como um investigador que descobrisse uma situação de pré-revolução ou coisa parecida.” (Robert Kramer) “Em Portugal aconteceu uma coisa nunca vista. Houve comissões de trabalhadores nos bancos, na imprensa, a ocupação do jornal República, da rádio. Era tudo novidade.” (Michel Lequenne) “Acordei como pessoa política. Pensei: O que é isto? Sonhei com isto a vida inteira e isto está a acontecer em Portugal.” (Pea Halmquist).
Todas as palavras dos fotógrafos, jornalistas, realizadores citados se encontram em OUTRO PAÍS de Sérgio Tréfaut, que procurou as imagens da revolução portuguesa os arquivos internacionais para realizar um retrato inédito em 1999. Em 2025, este Ciclo organiza-se a partir da mesma ideia, cruzando “clássicos” da “filmografia de Abril”, muito e pouco vistos, com títulos inéditos, ainda que não seja possível apresentar filmes tão relevantes como os realizados no Alentejo por Pea Halmquist (que a televisão sueca não pôde ceder por questões de direitos, mas de que há fragmentos em OUTRO PAÍS).
O programa agrega imagens de Robert Kramer, Santiago Álvarez, Philippe Costantini e Anna Glogowski, Daniel Edinger e Michel Lequenne, Hristo Ganev, Bernard Bloch, Josette Lassaque e Manuela Barros, mas também Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, Delphine Seyrig (são do coletivo de mulheres Les Insoumuses as únicas imagens de 1974 pré-Abril do programa), Alberto Seixas Santos e Sérgio Tréfaut, além de material televisivo da RTP com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em Lisboa e no Porto em 1975. Destaca a ligação portuguesa de Robert Kramer: dele se apresentam as SCENES FROM THE CLASS STRUGGLE IN PORTUGAL (correalizado com Philip Spinelli); um título do coletivo Newsreel (ON THE SIDE OF THE PEOPLE); o filme de Seixas Santos de 1982 sobre os caminhos tomados pela revolução com Kramer no papel do jornalista (GESTOS & FRAGMENTOS); a sua última entrevista, dada a Sérgio Tréfaut para OUTRO PAÍS.
Projetados com frequência na Cinemateca, SCENES FROM THE CLASS STRUGGLE IN PORTUGAL e TORRE BELA, de Thomas Harlan, são as longas-metragens icónicas da militância pós-1974, formando um núcleo dessa filmografia com o português AS ARMAS E O POVO. Ainda a ser alvo de trabalhos de restauro pela Cinemateca e o Filmmuseum de Munique, TORRE BELA (um caso fílmico de versões variáveis em diferentes momentos desde a estreia de 1977 em Cannes) não está desta feita incluído no programa, prevendo-se a sua próxima apresentação no termo dessa empreitada.
A sessão de TERRA DE ABRIL, a apresentar com O SOL, A CHUVA E O DINHEIRO, assinala o lançamento da edição DVD da “trilogia” de filmes realizados em Portugal por Philippe Costantini, que com Anna Glogowski acompanhará a sessão (ver entrada “Com a Linha de Sombra”), tal como Sérgio Tréfaut no caso de OUTRO PAÍS. De Hristo Ganev, que esteve em Portugal com Binka Jeliaskova em 1974, TARSETE MA BUKYA P (“PROCUREM EM P) é um dos títulos a apresentar pela primeira vez na Cinemateca, no caso, antecedendo a retrospetiva “Binka Jeliaskova: a luta é um murmúrio”, a decorrer em maio, com o Indielisboa e a presença na Cinemateca de Svetlana Ganeva, filha de ambos. Na sessão que evoca o caso da censura às escritoras das Novas Cartas Portuguesas, a repercussão do caso em França e a luta pela condição da mulher em Portugal, presta-se homenagem a Maria Teresa Horta (1937-2025), que em 2019, por ocasião de um Congresso Internacional dedicado à sua obra literária, participou, na Cinemateca, numa mesa-redonda à volta da sua relação com o cinema e o cineclubismo. Anabela Galhardo Couto e Teresa Joaquim, conhecedoras da obra de Maria Teresa Horta, acompanham a sessão para uma conversa final.
Contando com todas estas “pontes”, “Portugal 1974 – Um sítio que não existe, um tempo que verdadeiramente existiu” é o programa com que a Cinemateca celebra o espírito de Abril em articulação com a apresentação de SEMPRE de Luciana Fina, o filme-montagem que teve origem na instalação “Sempre: a Palavra, o Sonho e a Poesia na Rua”, comissariada e apresentada na Cinemateca para celebrar os 50 anos do 25 de Abril (ver entrada “50+1”). À semelhança de OUTRO PAÍS de Tréfaut, também aí ecoam “canções de Abril”, como a Liberdade de Sérgio Godinho – “Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir.”
 
 
17/05/2025, 17h00 | Sala Luís de Pina
Ciclo Portugal 1974 - Um sítio que não existe, um tempo que verdadeiramente existiu

Fighting For Worker´s Power | On The Side Of The People | Fatima Portugal À Genoux
 
17/05/2025, 17h00 | Sala Luís de Pina
Portugal 1974 - Um sítio que não existe, um tempo que verdadeiramente existiu
Fighting For Worker´s Power | On The Side Of The People | Fatima Portugal À Genoux
FIGHTING FOR WORKER’S POWER
de Newsreel Collective
Reino Unido, 1975 – 18 min

ON THE SIDE OF THE PEOPLE
de Newsreel Collective
Reino Unido, 1976 – 48 min

FATIMA PORTUGAL À GENOUX
de Bernard Bloch, Josette Lassaque, Manuela Barros
França, 1975 – 25 min

duração total da sessão: 91 min
legendados eletronicamente em português
| M/12

Formado em 1974, o Newsreel Collective dedicou-se a filmar as vidas dos trabalhadores com intuitos de ação e debate político: “São basicamente sobre pessoas como nós, os fazedores, em luta por uma vida decente contra um sistema que a nega.” Sobre o caso português, FIGHTING FOR WORKERS’ POWER retrata o caso do jornal República, a ocupação da Rádio Renascença, o crescimento do poder popular em Portugal; ON THE SIDE OT THE PEOPLE detém-se na ocupação da Tinturaria Portugália, uma lavandaria no centro de Lisboa que passou a ser dirigida por mulheres. Uma delas verbaliza: “Não quero cá o patrão, não quero ser explorada! Sou muito mais feliz agora. Não o queremos cá.” Do mesmo ano (Grande Prémio da televisão francesa nos anos 1970, digitalizado em 2024), FATIMA PORTUGAL À GENOUX foi realizado em Super 8 mm, em maio de 1975, em Fátima. É o bizarro registo da peregrinação no santuário em que, nesse ano, os muitos populares católicos rezaram lado a lado com militares. A apresentar em cópias digitais e em 16 mm pela primeira vez na Cinemateca (FATIMA) e depois de uma única passagem em 1984 (ON THE SIDE OF THE PEOPLE) e em 2014 (FIGHTING FOR WORKER´S POWER).

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