CICLO
FILMar no Dia Nacional do Mar - Reinscrever António Campos


António Campos (1922-1999) foi um pioneiro quando no cinema tudo parecia já ter sido esgotado, num país onde o cinema realmente livre era um exercício de redobrada imaginação, quando não uma impossibilidade. Chamemos-lhe escultor visual de paisagens habitadas por gentes maiores do que o ecrã, que recusam ser personagens porque existem para lá, antes e muito maiores que esse mesmo ecrã onde raramente foram vistas. Desta forma, pelo menos, à sua escala, diríamos.
O seu cinema – antropológico, etnográfico, transumante – legou-nos e permitiu que pudéssemos ter uma memória coletiva, mais abrangente e vinda das margens, tanto quanto paradoxal era a sua vontade de, numa ideia de cineasta todo-mundo, poder fazer um cinema vindo de dentro. Mas de quê, para e sobre quem, afinal falava António Campos?
No ano do seu centenário, e no Dia Nacional do Mar, homenageamos um realizador que inventou as suas normas e definiu as suas regras; autor de uma obra que desafia, ainda hoje, as fronteiras da etnoficção, do documentário do real e de um cinema tão verdadeiro quanto falsa é já, porque construção, a narrativa mesmo que descritiva, que um filme sugere.
Se a obra de António Campos não se extingue na sua relação com o mar, e se a água é um elemento presente em muitos dos seus filmes, o mundo de que António Campos quis falar – quis guardar? – é um mundo que estava, já então a desaparecer, e, entretanto, se transformou num outro, naquele onde somos herdeiros, pela imagem, de uma memória que, agora só cinematográfica e bidimensional. E por isso, completamente dependente de uma memória de espetadores em grande parte herdada.
Reinscrevamos, pois, o seu cinema na hiperatividade das imagens, da abundância de sentidos e na profusão de referências, contrariando a velocidade da perceção. As cópias que apresentamos neste quase double bill foram (quase todas) restauradas e digitalizadas no âmbito do projeto FILMar, que a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema operacionaliza com o apoio do programa EEAGrants.
Depois de uma primeira apresentação no Curtas de Vila do Conde, onde à surpresa da descoberta se juntou o reconhecimento de que estas imagens, e estas histórias eram tão-somente espelhos que há muito havíamos habitado, trazemos a Lisboa os filmes de um realizador sem chão, sem fronteiras, com horizonte. E, de caminho, lançamos o segundo episódio do podcast FILMar, produzido em colaboração com a Escola das Artes – Universidade Católica e disponível em todas as plataformas, inteiramente dedicado a um realizador para quem a imagem produz sons, vindos dos segredos da memória, ampliados pela urgência de um resgate ao esquecimento.
 
 
16/11/2022, 19h00 | Sala Luís de Pina
Ciclo FILMar no Dia Nacional do Mar - Reinscrever António Campos

Um Tesoiro | A Almadraba Atuneira | A Festa
duração total da projeção: 65 min | M/12
 
16/11/2022, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo FILMar no Dia Nacional do Mar - Reinscrever António Campos

Faina do Rio e do Mar | Gente da Praia da Vieira
duração total da projeção: 81 min | M/12
16/11/2022, 19h00 | Sala Luís de Pina
FILMar no Dia Nacional do Mar - Reinscrever António Campos
Um Tesoiro | A Almadraba Atuneira | A Festa
duração total da projeção: 65 min | M/12
sessão com apresentação
UM TESOIRO
de António Campos
Portugal, 1958 – 14 min

A ALMADRABA ATUNEIRA
de António Campos
Portugal, 1961 – 27 min

A FESTA
de António Campos
Portugal, 1975 – 24 min

As curtas-metragens reunidas nesta primeira sessão são aquelas onde o mar tem uma presença fundamental na definição do olhar de António Campos sobre as comunidades. A ficção que UM TESOIRO propõe é contrariada pela possibilidade de os atores serem também personagens de si mesmos, tanto quanto em A FESTA os rituais parateatrais transformam a comunidade de pescadores em espetadores de si próprios. Já em ALMADRABA ATUNEIRA, é de fim, de perda e de uma comunidade nas vésperas de uma mudança. Mas todo o filme, como aliás os dois que compõem esta sessão, anunciam o fim como um mal, mas atendem à possibilidade natural de regeneração. Adaptado do conto homónimo de Loureiro Botas, UM TESOIRO relata a vida de fome e de miséria que no inverno todos sofriam com a paragem das campanhas de arrasto. Os mais novos partiam para as florestas da Galiza, outros para as beiras interiores de Portugal, todos como madeireiros. Nem todos regressavam, mesmo os que iam para as margens do Tejo. Homenagem ao trabalho e esforço dos pescadores de atum algarvios, filmando a que viria a ser a última almadraba ou “campanha” por eles feita, já que, pouco depois do filme ALMADRABA ATUNEIRA estar terminado, o mar destruiu este arraial algarvio. As imagens de A FESTA, mostrando uma comunidade que celebra S. Pedro em benefício da capela local, em 9 e 10 de agosto de 1975, foram inicialmente captadas para integrar GENTE DA PRAIA DA VIEIRA. Mas o que António Campos regista é a continuidade do mar nas práticas sociais, religiosas e familiares de uma comunidade na qual o tempo parece ser uma ficção imposta pelo olhar do realizador.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
16/11/2022, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
FILMar no Dia Nacional do Mar - Reinscrever António Campos
Faina do Rio e do Mar | Gente da Praia da Vieira
duração total da projeção: 81 min | M/12
sessão com apresentação
FAINA DO RIO E DO MAR
de António Lopes Ribeiro
Portugal, 1959 - 9 min

GENTE DA PRAIA DA VIEIRA
de António Campos
Portugal, 1975 - 72 min

De todo o cinema produzido após a revolução de 1974, o de António Campos é aquele onde a passagem do tempo parece ter produzido menos efeitos, não só no modo de olhar para as realidades, mas também no modo de estas se expressarem. Em GENTE DA PRAIA DA VIEIRA, os elementos de ficção vêm sublinhar verdades inequívocas, onde a pequena história importa muito mais do que as mudanças sociais pelas quais o país se refazia. Com elementos ficcionados, este filme ilustra a vida dos pescadores da praia da Vieira (Vieira de Leiria), mostrando aspetos da sua migração para o Tejo, para águas mais tranquilas, em meados do século, e da ocupação de zonas ribeirinhas nas lezírias do Ribatejo, onde construíram pequenas aldeias palafíticas, à borda-d’água. A abrir a sessão, FAINA DO RIO E DO MAR, realizado quinze anos antes por António Lopes Ribeiro, oficioso realizador do regime que captava já as práticas de comunidades piscatórias, entre elas as da Praia da Vieira onde António Campos viria a construir um dos mais livres filmes de docuficção do cinema português. GENTE DA PRAIA DA VIEIRA é apresentado em cópia digitalizada pelo programa FILMar.

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