CICLO
Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)


A obra de Jean-Marie Straub (que completou 85 anos no passado mês de janeiro) e Danièle Huillet (1936-2006) é um dos grandes continentes isolados da História do cinema. É uma das mais radicais do cinema moderno, no sentido etimológico da palavra radical: que toma as coisas pela raiz. Straub e Huillet, casal inseparável que acabou por formar um único ser bicéfalo, refletem e trabalham em cada um dos seus filmes sobre a própria matéria cinematográfica: o que é um enquadramento, um plano fixo, um movimento de câmara, uma intervenção musical, um som, um corte. Nenhum dos seus filmes foi feito a partir de um argumento original, todos partem de um texto literário ou musical, que não “adaptam”, com o qual se confrontam e dialogam. E como Straub-Huillet passaram da França para a Alemanha e dali para Itália, os seus filmes são falados nas línguas destes três países, a partir de autores como Corneille, Hölderlin, Brecht, Pavese. E, por mais estranho que possa parecer a alguns espectadores, o par Straub-Huillet, que conhecia profundamente o cinema clássico, considerava-se herdeiro desta tradição e o seu cinema enraíza-se no de Erich von Stroheim, Fritz Lang, Carl Th. Dreyer, John Ford, Jean Renoir. Concebidos e executados com o mais extremo rigor (os ensaios com os atores podem durar meses) e dirigindo-se à lucidez e à perceção consciente do espectador, o cinema de Straub-Huillet nada tem de monolítico, é de grande variedade e grande intensidade formal. Além de trabalharem em três línguas diferentes, Straub-Huillet alternaram filmes a cores e a preto e branco, em 35 e em 16 mm, de longa e de curta-metragem. A reflexão e a prática sobre a própria matéria cinematográfica – este é um cinema literalmente materialista – e a presença essencial dos “temas” da resistência, da dissidência e da revolução, fizeram com que Jean-Marie Straub tenha tido enorme influência no cinema português posterior ao 25 de Abril. Uma retrospetiva organizada pelo Goethe Institut de Lisboa em março de 1975, primeira ocasião em que o público português pôde mergulhar na sua obra (em setembro de 1973, o Festival da Figueira da Foz apresentara A PEQUENA CRÓNICA DE ANNA MAGDALENA BACH), marcou época e foi literalmente histórica, pois influenciou profundamente diversos futuros realizadores, críticos e programadores, de mais do que uma geração.
Embora Jean-Marie Straub e Danièle Huillet tenham colaborado intimamente desde o começo, só em 1974 Huillet coassinou a realização de um filme, MOSES UND ARON. A partir daí, todos os filmes foram coassinados por Straub e Huillet, até QUEI LORO INCONTRI, em 2006, ano do falecimento dela, que marca um antes e um depois na vida, no trabalho e na obra de Jean-Marie Straub. Pelo facto de ter trabalhado em dois filmes que só se fizeram depois da sua morte, L’ITINÉRAIRE DE JEAN BRICARD e DIALOGUE D’OMBRES, Danièle Huillet é creditada postumamente como sua correalizadora. No ano em que Huillet morreu, Straub realizou o seu primeiro trabalho em tecnologia digital, EUROPA 2005 – 27 OCTOBRE, estruturado num plano fixo tipicamente straubiano. Nos últimos anos, Jean-Marie Straub retirou-se na Suíça, habitando na mesma cidade e na mesma rua onde vive Jean-Luc Godard. Continua a trabalhar, graças às facilidades da tecnologia digital, realizando uma série de trabalhos breves, em que continua a confrontar-se com textos preexistentes, de Montaigne ou Brecht.
Esta retrospetiva integral, cujas implicações culturais vão muito além do cinema, é completada com seis filmes documentais sobre o trabalho de Straub-Huillet: 6 BAGATELAS e ONDE JAZ O TEU SORRISO?, de Pedro Costa, UNE VIE RISQUÉE, de Jean-Claude Rousseau, JEAN-MARIE STRAUB UND DANIELE HUILLET BEI DER ARBEIT IN EINEM FILM (“Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a Trabalharem num Filme”), de Harun Farocki, SICILIA SI GIRA, de Jean-Charles Fitoussi, e VERTEIDIGUNG DER ZEIT / “DEFESA DO TEMPO” de Peter Nestler – que por indisponibilidade de cópia só é possível apresentar em outubro. Há vinte anos, em novembro de 1998, quando a Cinemateca organizou uma retrospetiva completa de Straub-Huillet, que contou com a presença de ambos em Lisboa, dividimos a apresentação da sua obra em capítulos (“Alemanha: Anos 60”; “Lições de História”; “Os Filmes de Toga” e outros), de modo a tornar visíveis certas pontes no interior desta obra. Para esta nova retrospetiva, cujo título é um verso de Corneille citado no título de OTHON, preferimos programar em ordem cronológica a obra de Straub-Huillet e a obra de Jean-Marie Straub posterior à morte de Danièle Huillet. O espectador poderá acompanhar, da primeira afirmação aos últimos passos, um percurso que atravessa todas as etapas de mais de meio século de cinema, pois, como bradou certa vez Jean-Marie Straub a um entrevistador, “se isto não é aquilo a que se chama cinema, que raio é então?”
O Ciclo prolonga-se a outubro, com a repetição de dez sessões programadas este mês. A obra de Straub-Huillet é alvo de uma conversa entre Bernard Eisenschitz e Pedro Costa, na sessão de ONDE JAZ O TEU SORRISO?
 
 
06/09/2018, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)

Einlteitung zu Arnold Schoenbergs “Begleitmusik zu Einer Lichtspielscene” | Moses und Aron
duração total da projeção: 121 min | M/12
 
07/09/2018, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)

Fortini/Cani
“Fortini/Cani – Os Cães do Sinai”
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
Itália, 1976 - 83 min
10/09/2018, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)

Toute Révolution Est un Coup de Dés | Dalla Nube alla Resistenza
duração total da projeção: 116 min | M/12
11/09/2018, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)

Trop Tôt, Trop Tard
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
França , 1980 - 105 min
11/09/2018, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)

Klassenverhältnisse
“Relações de Classe”
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
Alemanha, 1984 - 126 min
06/09/2018, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)
Einlteitung zu Arnold Schoenbergs “Begleitmusik zu Einer Lichtspielscene” | Moses und Aron
duração total da projeção: 121 min | M/12
EINLTEITUNG ZU ARNOLD SCHOENBERGS “BEGLEITMUSIK ZU EINER LICHTSPIELSCENE”
“Introdução à ‘Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema’ de Arnold Schoenberg”
de Jean-Marie Straub
Alemanha, 1972 – 16 min / legendado eletronicamente em português
MOSES UN ARON
“Moisés e Aarão”
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
com Günther Reiche, Louis Devos
Alemanha, Áustria, Itália, França, 1974 –105 min / legendado em português

Jean-Marie Straub e Danièle Huillet tinham uma forte identificação com a figura de Arnold Schönberg, que como eles foi um artista solitário e austero. Schönberg, por sua vez, identificava-se com a figura de Moisés, que ouvia a voz de Deus no deserto, enquanto a turba adorava um bezerro de ouro. Ao adaptarem a ópera inacabada do compositor vienense, Straub e Huillet, que sabiam ler música, começaram por fazer “aquilo que ninguém faz: procurar as nervuras na partitura para saber onde será possível intervir, mudar de plano, começar um bloco sonoro e interrompê-lo”. Filmado em cenários naturais, o filme foi feito em som direto, o que é obrigatório em Straub, numa autêntica proeza técnica. A abrir a sessão, outra obra schoenberguiana de Straub-Huillet, feita sobre uma música escrita para uma cena de um filme imaginário (“perigo ameaçador, angústia, catástrofe” foram os temas escolhidos pelo compositor). Straub-Huillet sobrepõem à música trechos da correspondência entre Schoenberg e Kandinsky. MOSES UND ARON é o primeiro filme cuja realização é coassinada por Danièle Huillet. EINLTEINTUNG ZU ARNOLD SCHOENBERGS… é apresentado em cópia digital.
 
07/09/2018, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)
Fortini/Cani
“Fortini/Cani – Os Cães do Sinai”
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
com Franco Fortini, Franco Lattes, Luciana Nissim, Adriano Aprà
Itália, 1976 - 83 min
legendado eletronicamente em português | M/16
O filme baseia-se num ensaio de Franco Fortini, um dos mais conhecidos intelectuais italianos do século XX, publicado três meses depois da Guerra dos Seis Dias, de junho de 1967, quando Israel alterou radicalmente o seu território, usurpando partes de três países vizinhos. O livro valeu a Fortini, nas suas palavras, “isolamento e ódios tenazes”. Straub declarou que o que interessara “era a cólera de um homem já idoso, filho de pai judeu e mãe cristã e que teve a coragem, enquanto intelectual italiano, de escrever um panfleto”. O filme consiste na leitura do texto pelo autor, minuciosamente ensaiado, em contraponto a paisagens italianas. Manuel Cintra Ferreira observou a propósito deste filme, “O que Straub fornece a quem quer ver são apenas os elementos de que dispõe. Esta é, no fim de contas, a evocação da História possível. Tudo o mais, reconstituições mais ou menos ‘perfeitas’ ou ‘grandiosas’, não é mais do que mero espetáculo”.
 
10/09/2018, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)
Toute Révolution Est un Coup de Dés | Dalla Nube alla Resistenza
duração total da projeção: 116 min | M/12
TOUTE RÉVOLUTION EST UN COUP DE DÉS
com Danièle Huillet, Gerorges Goldfayn, Michel Delahaye
França, 1977 – 11 min / legendado eletronicamente em português
DALLA NUBE ALLA RESISTENZA
com Olimpia Carlisi, Gino Felici, Ennio Lauricelle
Alemanha, 1978-79 – 105 min / legendado eletronicamente em português
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet

O título da longa-metragem desta sessão, “DA NUVEM À RESISTÊNCIA” podia servir para designar a obra do par Straub-Huillet. Baseado em dois textos distintos de Cesare Pavese, o filme começa com a personagem de uma ninfa sobre uma árvore, que para Straub é a “nuvem” do título, “desde a invenção dos deuses pelos homens até à resistência, quase imediata, deste contra aqueles, até à resistência ao fascismo”. A propósito deste filme, Serge Daney observou que se Straub-Huillet sempre manifestaram “um respeito meticuloso pelos textos, é preciso notar aqui em que sentido eles sabem violentá-los”. A abrir a sessão, uma densíssima curta-metragem, ilustração quase literal da noção de “sentido sepulto” de um filme, elaborada pelo mesmo Daney, cujo título é uma frase de Michelet. Diante do Muro dos Federados, no cemitério Père-Lachaise, onde foram fuzilados muitos participantes da Comuna de Paris, um grupo de pessoas lê um complexo poema de Stéphane Mallarmé. Segunda passagem em outubro.
 
11/09/2018, 18h30 | Sala Luís de Pina
Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)
Trop Tôt, Trop Tard
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
com as vozes de Danièle Huillet, Baghat el Nadi
França , 1980 - 105 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Neste ensaio político, que mostra a variedade da obra de Straub-Huillet, são cotejadas a situação da França nas vésperas da revolução de 1789 e as lutas dos camponeses egípcios no século XX. O dispositivo formal é claro: depois de um longo plano na Praça da Bastilha, vemos, de um lado, paisagens campestres francesas, enquanto Danièle Huillet lê trechos dos “cadernos de queixas” enviados pelas classes populares à Reunião dos Estados Gerais, em abril daquele ano, a partir da qual não tardaria a explodir a revolução; de outro, sobre paisagens de campos egípcios, são lidos trechos do sociólogo marxista Mahmud Hussein. O título do filme não induz a muito otimismo: era demasiado cedo em França e talvez já seja demasiado tarde no Egito. A apresentar em cópia digital. Segunda passagem em outubro.
 
11/09/2018, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Os Olhos Não Querem Estar Sempre Fechados – O Cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (I)
Klassenverhältnisse
“Relações de Classe”
de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet
com Christian Heinisch, Reinald Schnell, Anna Schnell
Alemanha, 1984 - 126 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Cópia amavelmente cedida pelo AUSTRIAN FILM MUSEUM
Filmado num magnífico preto e branco e estreado no Festival de Berlim, KLASSENVERHÄLTNISSE (“relações de classes e não luta de classes”, frisava Danièle Huillet) transpõe América, de Kafka. Trata-se de um dos filmes mais acessíveis da dupla de realizadores e foi inteiramente rodado na Alemanha (exceto um plano do rio Missouri) “porque no livro as relações entre as pessoas são muito mais alemãs que americanas”. KLASSENVERHÄLTNISSE é um filme do deslocamento, do desenraizamento, num mundo “onde não há absolutamente justiça. Para nós, Kafka é o único grande poeta da civilização industrial, ou seja, de uma civilização na qual as pessoas dependem do trabalho para sobreviver”. Foi um dos filmes que Jean-Marie Straub e Danièle Huillet escolheram para apresentar ao público aquando da retrospetiva organizada em 1998 na Cinemateca. Segunda passagem em outubro.