CICLO
Jean Grémillon – O Outro Gigante


“Para nós, era uma evidência que Jean Grémillon foi o maior cineasta francês dos anos 30-50 a par de Renoir” (Jean Douchet).
A declaração do grande crítico Jean Douchet surge numa entrevista de 2013 aos Cahiers du Cinéma, quando lhe perguntaram porque Jean Grémillon (1901-59) não fizera parte dos cineastas defendidos pela revista nos anos 50, quando esta fez uma drástica revisão de valores e nomes no cinema francês. Grémillon não foi atacado, mas tão pouco foi enaltecido, passou em silêncio. Na citada entrevista, Douchet explica ainda que naquele momento “era preciso defender Renoir, que regressava dos Estados Unidos. Mas é verdade que devíamos tê-lo posto na lista dos outros grandes nomes que defendemos à época: Bresson, Becker, Ophuls. Grémillon foi esquecido no movimento passional que agitava os Cahiers, mas nunca foi atacado. Não sentimos necessidade de defendê-lo. Ele estava no seu lugar”. Infelizmente, este lugar era o de um “cineasta maldito”, cujo nome era certamente muito menos conhecido pelos espectadores do que os seus contemporâneos franceses mais ilustres (Renoir, Marcel Carné, René Clair e Julien Duvivier), um homem cujos melhores filmes foram muitas vezes fracassos comerciais, o que o obrigou a realizar projetos que não lhe interessavam muito, ao passo que alguns dos seus projetos mais pessoais não se concretizaram. Estas desventuras sucedem a quase todos os realizadores, mas raramente de modo tão violento. A “maldição” de Jean Grémillon vem de longe e um artigo de 1946 na revista Écran, contém as seguintes palavras: “Jean Grémillon goza da estima dos seus pares e da desconfiança dos produtores. Ele não gostaria de inverter a ordem destes fatores por nada nesse mundo. Tem grandes projetos e uma vida difícil. Tem amor pelo seu ofício, que lhe agradece traindo-o cruelmente, com uma perfeita injustiça. Será Jean Grémillon o realizador maldito do cinema francês?”. Mas no seu caso, “maldito” não significa desconhecido ou ignorado, pois Grémillon desde os anos 30 foi defendido por importantes críticos e historiadores e em todas as fases da sua carreira pôde trabalhar com técnicos e atores de renome, como Jean Gabin, Michèle Morgan, Charles Vanel, Pierre Brasseur, Madeleine Renaud, Micheline Presle.
A comparação que Jean Douchet estabelece entre Grémillon e Jean Renoir não é fortuita. Dos seus contemporâneos franceses, aquele de quem ele é mais próximo é sem dúvida Renoir, o mais inclassificável de todos. Como ele, Grémillon abordou diversos géneros cinematográficos, mas sempre um pouco ao lado das convenções de género, mas de maneira talvez ainda mais radical: “Renoir joga o jogo sem jogar. Grémillon nem sequer finge que joga. Para Renoir, trata-se sempre de saber que papel representamos na vida, para ele a vida é um teatro. Grémillon, pelo contrário, recusa o teatro. As personagens dirigem-se para uma espécie de revelação delas mesmas”, diz Douchet. Isto talvez explique a conclusão a que chega o crítico: “Julgo que as pessoas não sabem apreendê-lo”. De facto, alguns admiradores de Grémillon perguntam-se se uma das razões do seu cinema não ter tido mais impacto não se deve ao facto da sua linguagem ser clássica, não espalhafatosa, da sua vontade de dizer mais com menos. No entanto, Grémillon tem um sentido visual agudo e não faltam ao seu cinema grandes cenas “barrocas”, festas ou bailes de máscaras em que os conflitos explodem e a verdade sobre as personagens se revela.
A obra de Grémillon atravessa todas as etapas do cinema clássico francês, do período mudo ao momento em que nascia a Nouvelle Vague, em fins dos anos 50 e em todas estas fases o seu cinema deixou a sua marca. A curva da sua carreira é marcada por altos e baixos. Depois de realizar vinte curtas-metragens documentárias (que se perderam), Grémillon realiza, ainda no período mudo, os esplêndidos GARDIENS DE PHARE (1926) e MALDONE (1927), o primeiro passado num farol e com ecos visuais do cinema de vanguarda, o segundo quase inteiramente filmado ao ar livre. No início dos anos 30, quando o cinema sonoro se impõe, as novas convenções narrativas ainda não se tinham definido e a linguagem cinematográfica era livre. No entanto, os dois primeiros filmes sonoros de Grémillon - os extraordinários LA PETITE LISE e DAÏNAH LA MÉTISSE - eram de tal modo insólitos que ele se tornou persona non grata entre os produtores. Exilou-se então em Espanha, onde realizou dois filmes extravagantes e dali passou a Berlim, realizando nos estúdios da UFA quatro filmes. O terceiro, GUEULE D’AMOUR/PASSOU UMA MULHER (1937), com Jean Gabin então no auge da sua carreira e do seu mito, foi um grande êxito e fez de Grémillon um realizador de prestígio. Paradoxalmente, foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando a França estava ocupada pela Alemanha nazi, que este homem de esquerda, companheiro de viagem do Partido Comunista e ligado a movimentos de resistência, chegou ao cimo da sua carreira. O facto de realizadores franceses de grande prestígio, como Renoir, Clair e Duvivier se terem expatriado em Hollywood abrira espaço e, apesar das terríveis circunstâncias, entre 1940 e 1943 Grémillon realiza três dos seus filmes mais admirados: REMORQUES, LUMIÈRE D’ÉTÈ e LE CIEL EST À VOUS. Mas o período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial foi marcado por uma série de frustrações. O seu documentário sobre a libertação da Normandia, LE SIX JUIN À L’AUBE, encontrou obstáculos junto às forças militares americanas, mas foi levado a cabo. Porém um ambicioso projeto sobre a Comuna de Paris e um filme passado entre a Guerra de Espanha e a libertação de Paris tiveram de ser abandonados por falta de financiamento. Até mesmo uma encomenda oficial do Estado para um filme sobre a revolução de 1848 foi posta de lado, sem dúvida devido ao tenso contexto político da época. O fracasso comercial de L’AMOUR D’UNE FEMME/O AMOR DE UMA MULHER (1953) pôs fim à sua carreira e nos seus últimos cinco anos de atividade Grémillon só pôde realizar curtas-metragens, sobre temas tão variados como a alquimia, a astrologia, as tapeçarias de Gobelins e a pintura de André Masson.
Grémillon ficou profundamente ligado à Cinemateca Francesa, da qual foi presidente entre 1944 e 1958, o que contribuiu certamente para que os seus filmes não se perdessem e não fossem esquecidos. Embora nem sempre seja fácil definir o que faz a qualidade e a beleza do seu cinema, o crítico e historiador Bernard Eisenschitz conseguiu-o, com as seguintes palavras: “Grémillon insiste num cinema da responsabilidade, um cinema popular, que combina as forças da ficção e as da não-ficção, os valores artesanais e a inspiração de um autor. O que caracteriza os seus filmes mais conseguidos é o domínio que ele tem sobre o material sobre o qual trabalha. Mas há um outro aspeto, ausente dos comentários críticos, mas que é evidente nos filmes: a afirmação da impossibilidade da harmonia, os conflitos entre o amor e a vocação resolvidos sem as mitologias que sempre lhes são associados, as contradições sociais que explodem em frustrações sexuais”. Neste ponto, Eisenschitz coincide com Jean Douchet, que considera que “a sexualidade é uma porta de entrada indispensável para o seu cinema. Para Grémillon, a questão essencial é: como sentir a vida e como não entravar a coisa essencial que dá vida à vida? Isto é, a sexualidade, as sensações ou a relação amorosa, embora Grémillon não ilustre a trama clássica de um encontro amoroso.”
Ao longo dos anos, a Cinemateca Portuguesa mostrou quase toda a obra de Jean Grémillon, sem deixar de lado nenhum dos seus filmes importantes, alguns dos quais foram mostrados mais de uma vez. Trata-se porém da primeira vez que a sua obra é aqui reunida numa retrospetiva, à qual faltam apenas algumas curtas-metragens e a longa LES PATTES DE MOUCHES (de que não existem actualmente cópias projetáveis), mas que inclui algumas longas-metragens raríssimas, como VALSE ROYALE e POUR UN SOU D’AMOUR. Quanto mais os filmes de Jean Grémillon forem conhecidos, mais o seu talento será reconhecido.
 
 
13/02/2020, 22h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Jean Grémillon – O Outro Gigante

La Dolorosa
de Jean Grémillon
Espanha, 1934 - 74 min
14/02/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Jean Grémillon – O Outro Gigante

Valse Royale
Valsa Real
de Jean Grémillon
França, 1935 - 86 min
14/02/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Jean Grémillon – O Outro Gigante

Centinela Alerta!
de Jean Grémillon (realização parcial e não assinada)
Espanha, 1935 - 73 min
 
17/02/2020, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Jean Grémillon – O Outro Gigante

Daïnah la Métisse
de Jean Grémillon
França, 1931 - 49 min
 
17/02/2020, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Jean Grémillon – O Outro Gigante

Gueule d’Amour
Passou uma Mulher
de Jean Grémillon
França, 1937 - 90 min
13/02/2020, 22h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Jean Grémillon – O Outro Gigante
La Dolorosa
de Jean Grémillon
com Rosita Diaz, Agustin Godoy, Amparito Bosc, Pilar Garcia
Espanha, 1934 - 74 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Depois do fracasso comercial de DAÏNAH LA MÉTISSE e da experiência de POUR UN SOU D’AMOUR, Grémillon expatriou-se em Espanha, onde realizou dois filmes, o primeiro dos quais foi LA DOLOROSA. Neste mesmo período Luis Buñuel deixara Paris e instalara-se em Madrid, onde participou da produção e, ao que parece, da realização de filmes destinados ao “grande público”. Como diz o genérico, LA DOLOROSA é a “adaptação da famosa zarzuela, com música de José Serrano e libreto de Juan José Lorente”. Embora este género musical espanhol seja associado a temas alegres e embora o desenlace sugira um final feliz, o argumento de LA DOLOROSA é melodramático: uma jovem é seduzida, engravidada e abandonada, o pintor que a amava castamente entra para um convento. As cenas cantadas, oito no total, não são coreografadas, nem se situam num palco. Na passagem cantada mais importante, o dueto do par de protagonistas, o canto é em off, numa ideia original.
 
14/02/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Jean Grémillon – O Outro Gigante
Valse Royale
Valsa Real
de Jean Grémillon
com Henri Garat, Renée Saint-Cyr, Bernard Lancret, Mila Parély
França, 1935 - 86 min
legendado eletronicamente em português| M/12
Depois do seu exílio espanhol em 1934-35, Jean Grémillon expatriou-se em Berlim, a convite de Raoul Ploquin, que dirigia o departamento de língua francesa da UFA, um dos maiores estúdios da Europa. Ali Grémillon realizaria quatro filmes, em excelentes condições técnicas, o primeiro dos quais foi VALSE ROYALE, versão em língua francesa de um filme originalmente feito em alemão, KOENIGS WALZTER, de Herbert Marisch, com a vedeta Willy Forst e cenários de Walter Röhrig, que colaborara com Murnau nos anos 20. Tudo começa quando um aristocrata ajuda uma mulher a pôr o seu xaile, que fora arrastado pelo vento, pede um beijo como recompensa e o cavalo dele morde-a. Isto causa um escândalo, que será resolvido através de valsas e intrigas de corte. Um excelente exemplo dos filmes feitos em diversas “versões” (isto é, em diversas línguas) e nos mesmos cenários, nos primeiros tempos do cinema sonoro. Primeira apresentação na Cinemateca.
 
14/02/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Jean Grémillon – O Outro Gigante
Centinela Alerta!
de Jean Grémillon (realização parcial e não assinada)
com Ana Maria Custodio, Angelillo, Angel Sampredo, Luis Heredia
Espanha, 1935 - 73 min
legendado eletronicamente em português| M/12
Este segundo filme espanhol de Grémillon tem algumas semelhanças com LA DOLOROSA: também aqui uma jovem é seduzida, engravidada e abandonada, porém neste filme o malfeitor regressa para tirar-lhe dinheiro. Entretanto, um cantor, dito o “Rouxinol da Andaluzia”, que está apaixonado por ela, julga-se traído. O filme também contém elementos cómicos e termina com um número musical de palco, em que o casal se reencontra. Para este filme, foi feito um concurso para encontrar a “Shirley Temple espanhola” para o papel da filha da protagonista. Grémillon não concluiu o filme, que não é assinado e talvez tenha sido terminado por Luis Buñuel, que foi o seu diretor de produção. Primeira apresentação, em cópia digital, na Cinemateca.
 
17/02/2020, 18h30 | Sala Luís de Pina
Jean Grémillon – O Outro Gigante
Daïnah la Métisse
de Jean Grémillon
com Charles Vanel, Laurence Clavius, Habib Benglia
França, 1931 - 49 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O fracasso comercial de LA PETITE LISE tornou o nome de Grémillon “maldito” entre os produtores e ele começou então uma “travessia do deserto”, de que DAÏNAH, LA MÉTISSE é o primeiro exemplo. Mas também este filme foi “maldito”, pois desagradou aos produtores e foi reduzido de 120 minutos para 90, à revelia do realizador, que o renegou. Quando foi restaurado em 1986, por ocasião dos cinquenta anos da Cinemateca Francesa, o material aproveitável era ainda mais curto, embora seja possível acompanhar as grandes linhas da narração. Mas mesmo mutilado, DAÏNAH, LA MÉTISSE é um objeto surpreendente. A ação tem lugar num transatlântico de luxo, no qual viajam a protagonista e um prestidigitador negro. O simples facto de dois negros serem os protagonistas de um filme francês de 1931 torna DAÏNAH, LA MÉTISSE um objeto insólito e este aspeto é reforçado pela trama narrativa, que chega ao seu ponto culminante num baile de máscaras, uma das muitas festas no cinema de Grémillon a acabar em desgraça. Um filme extraordinário, a (re)descobrir. A apresentar em cópia digital.
 
17/02/2020, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Jean Grémillon – O Outro Gigante
Gueule d’Amour
Passou uma Mulher
de Jean Grémillon
com Jean Gabin, Mireille Balin, René Lefebvre
França, 1937 - 90 min
legendado eletronicamente em português| M/12
Terceiro dos quatro filmes (o segundo fora LES PATTES DE MOUCHE) realizados em Berlim por Grémillon, GUEULE D’AMOUR teve grande êxito de bilheteira, o que pôs o realizador numa posição de destaque no cinema francês. O filme é feito à volta de Jean Gabin, então a maior vedeta francesa, juntando-o a Mireille Balin, que contracenara com ele em PEPÉ LE MOKO no ano anterior, de modo a aproveitar o êxito daquele filme. Em GUEULE D’AMOUR, Gabin é um garboso soldado, um sedutor, que é seduzido por uma mulher que ele ignora ser uma prostituta de luxo. Depois de deixar a tropa, o homem vai trabalhar numa gráfica e perde o prestígio de que gozava junto dela. Jean Gabin tem uma presença extraordinariamente intensa neste filme, que valoriza ao máximo a sua imagem de símbolo sexual proletário e de homem fundamentalmente bom que é levado, por paixão, a transformar-se num criminoso. Um dos grandes filmes de Jean Grémillon e um dos momentos mais fortes da presença de Jean Gabin no cinema. A apresentar em cópia digital.