CICLO
A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali


A colaboração entre a Cinemateca e o IndieLisboa, em 2017 na sua 14ª edição, resulta na programação e organização da primeira retrospetiva da obra de Paul Vecchiali em Portugal e retoma a apresentação, na Cinemateca, da secção do festival “Director’s Cut” (que reflete a História do cinema, a sua memória e o seu património), em rima com sessões “em contexto”. A Cinemateca acolhe ainda uma sessão do programa “Silvestre” que reúne obras de Franz Winzentsen e Tobias Sandberger, Luca Ferri, Robert Cambrinus, Elsa Brés, Bertrand Mandico e Friedl Vom Gröller.
 
Paul Vecchiali
“Como espectador, desejo, de um filme, a invasão e não a evasão. Desejo que o filme seja fecundo, que me desconcerte, que venha ter comigo, como uma garrafa no mar.”
Paul Vecchiali
 
Contemporâneo da Nouvelle Vague e desde o início, nos anos sessenta, autor de uma obra não alinhada com nenhum movimento, o francês Paul Vecchiali (nascido em 1930, em Ajaccto) tem uma raramente prolífera filmografia que atravessa mais de cinco décadas e onde se contam cerca de 50 títulos de curta e longa-metragem, para cinema e televisão, realizada entre 1961 (LES PETITS DRAMES, uma primeira longa que, perdida, permaneceu inédita) e, até esta data, 2015, ano de LE CANCRE. Profundamente singular, o cinema de Vecchiali tem a marca da independência das suas condições de produção e a da liberdade da sua abordagem. A cinefilia e o gosto pelo cinema francês dos anos trinta, a reflexão sobre a História de França e questões sociais controversas, a sexualidade e as relações amorosas, mas também o próprio cinema, refletem-se numa obra que se reinventa, atenta às personagens e às possibilidades dramatúrgicas da mise-en-scène, escapando às convenções e trabalhando no interior de géneros como o melodrama, o policial ou o fantástico. Em retrospetiva, Vecchiali viu a génese da sua obra no inaugural LES RUSES DU DIABLE (primeira longa-metragem existente, de 1965): “aquilo que me interessou e orientou a minha obra posterior foi a técnica e a gestualidade do ator (...). O importante é coreografar o movimento dos corpos”.
Se a explosividade não alinhada da sua obra teve como reverso uma relativa discrição pública, teve também, desde o início, defensores notáveis entre pares: Jacques Demy e Agnès Varda foram dos primeiros a manifestar admiração por LES RUSES DU DIABLE e foi a propósito deste filme que François Truffaut o designou como “o único herdeiro de Renoir”. FEMMES FEMMES (1974), que viria a ser o seu filme mais aclamado e um pequeno culto do cinema francês, foi visto por Pasolini como uma revelação quando da sua passagem no festival de Veneza. Godard foi um espectador atento dos planos-sequência de ONCE MORE (1987) e elogioso do “milagre” de À VOT’BON COEUR (2003). Louis Skorecki defendeu a singularidade do seu percurso nos anos noventa, apontando-o como um “cine-filho que ocupa um lugar à parte na paisagem do cinema francês”. Pierre Léon notou-lhe “o risco permanente” e a “capacidade de invenção dramatúrgica, a par do jogo dos atores”.
O entendimento do cinema e a independência de Vecchiali, também ator, argumentista, crítico e escritor, encenador de teatro, são indissociáveis do seu trabalho como produtor e da trupe de atores e técnicos que foi tornando seus cúmplices ao longo dos anos e dos filmes. Quatro exemplos: Sonia Saviange, sua irmã, foi presença regular nos seus filmes desde a curta-metragem de 1962 LES ROSES DE LA VIE a EN HAUT DES MARCHES (1983), o primeiro filme em que dirige Françoise Lebrun, também ela uma atriz que o acompanha, e onde entrega o protagonismo a Danielle Darrieux, por quem nutre uma sentida paixão cinéfila desde pequeno. Hélène Surgère, protagonista de FEMMES FEMMES ao lado de Sonia Saviange, o seu primeiro grande papel em cinema, e de CORPS À COEUR, é outra das estrelas da sua constelação, participando em vários outros dos seus filmes. Foi ela quem afirmou que “Não é possível explicar Paul sem o cinema”.
Quando se radica em Paris no início dos anos sessenta, depois da infância passada em Toulon, Vecchiali estreia-se no cinema pela realização (LES PETITS DRAMES); funda a produtora Les Films de Gion, em homenagem a Mizoguchi (1963), onde produz, entre outros, os primeiros filmes de Jean Eustache; colabora com os Cahiers du cinéma (1963/64), e mais tarde com as revistas Images et Sons e La Révue du Cinéma (1971/77), defendendo particularmente o cinema de Jean Grémillon, Max Ophuls e Robert Bresson. Em 1970, com Guy Cavagnac e Liliane de Kermadec, funda a Unité 3, onde coproduz JEANNE DIELMAN, 23 QUAI DU COMMERCE, 1080 BRUXELLES, de Chantal Akerman, mas é em 1977 que dá início a “uma das últimas experiências coletivas do cinema francês”, uma Factory francesa, especialmente ativa até meados da década de oitenta, assente nos pressupostos de partilha de uma equipa técnica, uma trupe de atores, o compromisso inviolável de respeitar o orçamento de cada projeto, de filmar depressa e em liberdade: a Diagonale é a sua casa de produção e o lugar onde, além dos seus (a partir de LA MACHINE), produz filmes de Jean-Claude Biette, Jean-Claude Guiguet, Marie-Claude Treilhou, Noël Simsolo, Gérard Frot-Coutaz, Claudine Bories. Serge Bozon chamou-lhe “a última escola importante do cinema francês depois da Nouvelle Vague”. A Diagonale tinha a sua base perto da casa de Vecchiali, em Kremlin-Bicêtre (onde o realizador se instalara em 1970). Atualmente, é na sua moradia em Plan-de-la-Tour, a que chamou “Mayerling”, a partir do filme homónimo de Anatole Litvak com Danielle Darrieux (1937), que Vecchiali desenvolve e filma os seus projetos, entre eles um núcleo “Anti-Dogma” em que a casa é um dos elementos recorrentes. Foi olhando esta peculiaridade que Matthieu Orléan estruturou a sua monografia Paul Vecchiali, La Maison cinéma (2011), em cujo prefácio Julien Cendres nota que o cineasta “faz corpo (e coração) com a História do cinema. Pertence-lhe.” E que a sua obra é a de “um idealista e realista” feita “de filmes não conformes. À margem. Filmes sem precedente. Que abrem novas vias. Fundadores. [...] Nos confins do íntimo e do universal, diagonal, a obra polifónica de um ‘cine-escritor’ irredutível”.
Como escritor, Vecchiali, tem vários romances publicados, uma autobiografia e a aventura em dois volumes de L’Encinéclopédie, Cinéastes français des années trente et leur oeuvre (2010).
Ininterrupta desde 1961, mas mais televisiva do que cinematográfica na década de noventa, em que dificuldades acrescidas de montagem dos projetos o levaram a afastar-se do cinema, a obra de Vecchiali manteve-se relativamente secreta durante anos. Conheceu um novo fôlego de divulgação no início deste milénio, a que não terá sido alheia a retrospetiva integral da Cinemateca francesa em 2002, onde depois da projeção de EN HAUT DES MARCHES, Danielle Darrieux gritou aos espectadores: “Digam-lhe que ele não tem o direito de parar!” Vecchiali não parou. Em Portugal, apenas quatro das suas longas-metragens estrearam comercialmente (LES RUSES DU DIABLE, L’ÉTRANGLEUR, CHANGE PAS DE MAIN e CORPS À COEUR). Na Cinemateca, foram apresentados, até esta data, FEMMES FEMMES, TROUS DE MÉMOIRE, EN HAUT DES MARCHES, NUITS BLANCHES SUR LA JETÉE e MASCULINS SINGULIERS, episódio do coletivo L’ARCHIPLE DES AMOURS. Propondo 17 filmes de Vecchiali, que o IndieLisboa distingue como um dos “Heróis Independentes” da sua edição deste ano, a retrospetiva oferece um olhar panorâmico sobre a obra do realizador; cruza-se com a apresentação de UN, PARFOIS DEUX realizado por Laurent Achard para a série “Cinéma de Notre Temps” sobre o cinema de Vecchiali (programado na secção “Director’s Cut”); e conta com um Encontro com Paul Vecchiali, que estará em Lisboa para acompanhar a iniciativa a partir de 8 de maio. As notas que se seguem apresentam e contextualizam os filmes da retrospetiva.
 
 
12/05/2017, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Les Premières Vacances | Once More
duração total da projeção: 113 min | M/12
 
12/05/2017, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Femmes Femmes
de Paul Vecchiali
França, 1974 - 120 min
12/05/2017, 22h00 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

À Vot’bon Coeur
de Paul Vecchiali
França, 2003 - 95 min
13/05/2017, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Les Gens d’en Bas
de Paul Vecchiali
França, 2010 - 103 min
13/05/2017, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Le Cancre
de Paul Vecchiali
França, 2015 - 116 min
12/05/2017, 18h30 | Sala Luís de Pina
A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Em colaboração com Indielisboa – Associação Cultural
Les Premières Vacances | Once More
duração total da projeção: 113 min | M/12
LES PREMIÈRES VACANCES
de Paul Vecchiali
França, 1967 – 26 min / legendado eletronicamente em português
ONCE MORE
de Paul Vecchiali
com Jean-Louis Rolland, Patrick Reynal, Florence Giorgetti, Pascale Rocard, Nicolas Silberg, Dora Doll
França, 1987 – 87 min / legendado eletronicamente em português

Jacky, Nicole Castelletta e os filhos de ambos podem ir de férias pela primeira vez na vida graças aos agrupamentos agrícolas em exploração comunitária. LES PREMIÈRES VACANCES é um título documental, produzido pelo Ministério da Agricultura, uma encomenda que o realizador encara pessoalmente. “Vecchiali não faz o filme esperado, ou seja, o filme de propaganda em prol de uma medida social. Põe em valor o mistério das personagens (…), privilegia a complexidade dos lugares” (Matthieu Orléan). Na década que vê surgir o arraso devastador da epidemia da Sida, ONCE MORE é um dos primeiros filmes que o reflete na perspetiva do cinema pessoal de Vecchiali. O argumento segue um homem de 40 anos que, em 1978, põe fim ao casamento e a uma vida para ele insuportável e que, mais tarde inicia uma relação homossexual, nos anos oitenta do avanço da Sida. “ONCE MORE nasce de uma declaração de Charles Pasqua que evoca a epidemia como uma ‘punição divina’. Para lutar contra o tempo da Sida que ataca os corpos com violência, Veechiali encerra estes 90 minutos em 15 planos-sequência e um campo/contracampo: é a sua maneira de desafiar o presente e de lutar contra a propagação da doença com os seus instrumentos de cinema e sem exército científico. No interior destas cápsulas de tempo cativo, escolhe seguir o trajeto de um homem livre que aceita a sua existência até às últimas consequências” (Matthieu Orléan). ONCE MORE é apresentado em cópia digital.
 
12/05/2017, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Em colaboração com Indielisboa – Associação Cultural
Femmes Femmes
de Paul Vecchiali
com Hélène Surgère, Sonia Saviange, Michel Duchaussoy, Michel Delahaye, Huguette Forge, Liza Braconnier, Henry Courseaux, Marcel Gassouk, Charles Level, Noël Simsolo, Claire Versane, Jean-Claude Guiguet
França, 1974 - 120 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Com a presença de Paul Vecchiali
“Um realizador no desemprego e duas atrizes no desemprego fazem um filme: eis um ato revolucionário”, disse Vecchiali sobre FEMMES FEMMES, um dos seus filmes mais celebrados, importante no seu percurso também pelo eco que a passagem no Festival de Veneza deu à sua obra. Coescrito com Noël Simsolo, FEMMES FEMMES é uma delirante “comédia musical” que reúne duas atrizes fracassadas num teatro muito particular (um apartamento), protagonistas de um jogo entre o “teatro” e a “vida”. Depois de uma participação em L’ÉTRANGLEUR, Hélène Surgère, atriz de teatro que Vecchiali levou para o cinema, surge pela primeira vez num grande papel de cinema. Em 1974, Pasolini foi um dos grandes admiradores do filme, tendo mostrado cenas dele aos atores de SALÓ, que então preparava e em que Surgère e Sonia Saviange igualmente participam. “Um ensaio para um regresso ‘pós-Nouvelle Vague’ ao cinema popular francês dos anos trinta” (Luís Miguel Oliveira). A apresentar em cópia digital.
 
12/05/2017, 22h00 | Sala Luís de Pina
A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Em colaboração com Indielisboa – Associação Cultural
À Vot’bon Coeur
de Paul Vecchiali
com Paul Vecchiali, Françoise Lebrun, Elsa Lepoivre, Matthieu Marie, Emmanuel Broche, Thérèse Roussel, Michel Delahaye
França, 2003 - 95 min
legendado eletronicamente em português | M/12
É o “Anti-dogma 1” da obra de Vecchiali, um mordaz retrato de origem autobiográfica, em que o realizador retoma um filme inacabado (LA GUÊPE) para contar a história de um cineasta a quem é recusado um subsídio do Estado francês pela vigésima vez consecutiva, o que interdita a conclusão da rodagem, e o leva a assassinar os membros da comissão responsável. Contou Vecchiali que enviou uma cópia do filme a Godard, que admirara os anteriores EN HAUT DES MARCHES e ONCE MORE, pedindo-lhe uma opinião e recebendo como resposta: “Não mude um único fotograma deste milagre”.
 
13/05/2017, 18h30 | Sala Luís de Pina
A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Em colaboração com Indielisboa – Associação Cultural
Les Gens d’en Bas
de Paul Vecchiali
com Serge Feuillard, Julien Lucq, Matthieu Marie, Maïa Jarville, Sandra Jouet, Paul Vecchiali, Hélène Surgère
França, 2010 - 103 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Sétimo título da série “Anti-dogma”, em que Vecchiali reivindica continuar a fazer cinema como ato de resistência e em plena liberdade criativa, com uma pequena equipa de colaboradores, normalmente rodados na casa em que há uns anos se instalou na Provence francesa, e se torna ela própria um elemento fundamental dos filmes: a “villa Mayerling”, batizada em homenagem a Danielle Darrieux e a um dos seus primeiros gostos cinéfilos – MAYERLING, de Anatole Litvak (1936). LES GENS D’EN BAS segue a personagem de Alain, “um trabalhador sazonal ligeiramente espantadiço”. É um dos filmes da “Pentalogia do Sul de França”, realizada entre 2006 (ET TREMBLE DÊTRE HEUREUX) e 2011 (RETOUR À MAYERLING), em que Vecchiali assume o papel de uma personagem recorrente, que responde por nomes diversos, tornando-se realizador-ator.
 
13/05/2017, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Indielisboa: Paul Vecchiali

Em colaboração com Indielisboa – Associação Cultural
Le Cancre
de Paul Vecchiali
com Catherine Deneuve, Paul Vecchiali, Mathieu Amalric, Édith Scob, Françoise Arnoul, Annie Cordy, Françoise Lebrun
França, 2015 - 116 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Com a presença de Paul Vecchiali
A mais recente longa-metragem de Paul Vecchiali tem um subtítulo, inscrito no final – CARNET DE BELLES, evocando a filiação em CARNET DE BAL (Julien Duvivier, 1937). Reunindo um elenco de estrelas em que se contam Catherine Deneuve, Édith Scob, Françoise Lebrun e Mathieu Amalric, LE CANCRE segue a personagem de Laurent que, adulto, vive uma relação conflituosa com o pai. É à volta deste que gravitam uma série de mulheres, as mulheres que ele procura, obcecado em encontrar o amor da sua adolescência, Marguerite. “Privilegiei os planos longos que exprimem melhor as variações de temperamento e a conflitualidade. Muitas vezes na comédia, e também numa espécie de registo fantástico, o filme escapa ao pathos subjacente e transmite a emoção surda, obsessiva, de um primeiro amor de que se diz ser o mais forte. Tal como a impotência de exprimir a ternura que sente um filho perante um pai rezingão, manipulador e brusco” (Vecchiali).