CICLO
O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique


“O meu compromisso é com as pessoas, e não com o cinema”. A afirmação de Licínio de Azevedo diz muito do seu entendimento e da sua prática do cinema, a que chegou vindo da escrita e do jornalismo, a partir de meados dos anos oitenta, compondo desde então uma obra profundamente enraizada na realidade moçambicana no rasto da guerra pela independência do país e da subsequente guerra civil, e efetivamente criando uma linguagem cinematográfica própria. Como “cronista”, como “contador de histórias”, foi apurando o seu território na imbricação de registos, a realidade, os seus fantasmas e delírios, bem como a ficção que ela permite, ou à qual se abre. O cinema documental e o de ficção coexistem nos filmes de Licínio com uma notável originalidade, que em boa medida assenta na importância de um olhar sobre as pessoas, as suas histórias e movimentos individuais no contexto da realidade – moçambicana – em que vivem, dando-lhes, a elas, a voz. Frequentemente também pondo-as a viver as suas próprias experiências, interpretando-se como “personagens” face à câmara, num gesto que convoca a memória e propõe uma possibilidade de catarse. “Estou mais interessado naquilo que as pessoas são no momento em que estão a ser filmadas do que naquilo que podem ser como personagens”, diz também Licínio.
A “intuição” chegou cedo na sua filmografia, logo em A COLHEITA DO DIABO, que apresentando-se como um filme de ficção integra a participação, nos seus próprios papéis, de (não)atores ex-combatentes da FRELIMO. Tornou-se uma evidência no seguinte MARRACUENE, que o cineasta considera como o filme em que começou a desenvolver a sua linguagem documental, pondo as pessoas a dialogar entre si e a viver o seu quotidiano para a câmara, o que numa obra mais tardia como DESOBEDIÊNCIA adquire uma assinalável expressão. O cinema de Licínio (que o próprio tem vindo a produzir na Ebano Multimedia, de que foi um dos fundadores) reflete a guerra pela independência de Moçambique, muito presente nos seus primeiros filmes, mas também a realidade que se lhe seguiu e muito especialmente a da guerra civil, fazendo ainda eco do passado colonial português. Simultaneamente incide em questões prementes da vivência moçambicana e nas suas “histórias comunitárias”; revela a natureza contemporânea da sociedade moçambicana; centra-se inúmeras vezes em figuras e personagens femininas; vive da ancestralidade da cultura africana. A tragédia, uma certa loucura e o sentido de humor que reconhece como traços moçambicanos enformam os filmes de Licínio onde encontram um forte eco, em conjugação com as influências do jornalismo americano e do realismo mágico latino-americano, decisivas na conjugação de elementos e registos que caraterizam o seu cinema.
Nascido no Brasil em 1951, cedo interessado pelo jornalismo de investigação na tradição americana, Licínio de Azevedo estudou jornalismo, foi repórter policial, escreveu na revista Folha da Manhã durante a ditadura brasileira e percorreu boa parte da América Latina como repórter especialmente focado em assuntos sociais, tendo ainda trabalhado em Portugal e na Guiné-Bissau. A Moçambique, chegou em 1977 a convite de Ruy Guerra, que então montava o Instituto Nacional de Cinema, em tempos de convicção ideológica e intensa militância. Aí começou por escrever textos para documentários e contactou com Jean Rouch e Jean-Luc Godard, a quem fica a “dever” a descoberta da tecnologia do vídeo. A passagem à realização dá-se em 1986 com as curtas-metragens MELANCÓLICO e O POÇO, logo premiados em festivais internacionais de cinema, o que tem vindo a ser uma recorrência nos filmes de Licínio, que em 1999 recebeu o prémio FUNDAC do Fundo Nacional da Cultura de Moçambique pelo conjunto da sua obra cinematográfica. Da sua obra como escritor – e é como escritor e cineasta que Licínio de Azevedo se apresenta –, refiram-se Diário da Libertação publicado no Brasil e coassinado com Maria da Paz Rodrigues, livro que terá levado Ruy Guerra a desafiá-lo à ida para Moçambique; Relatos do Povo Armado, que esteve na origem do argumento da primeira longa-metragem de ficção moçambicana O TEMPO DOS LEOPARDOS (Zdravko Velimirovic, 1985); ou O Comboio de Sal e Açúcar, ambientado na guerra civil, que está na base do filme que Licínio conclui neste momento em Portugal.

Os filmes a apresentar são em todos os casos primeiras exibições na Cinemateca. Vão ser projetados nos seus formatos originais em vídeo e em ficheiros digitais. Licínio de Azevedo acompanha o programa da retrospetiva da sua obra em Lisboa, apresentando algumas das sessões da retrospetiva.
 

 
01/12/2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique

Virgem Margarida
de Licínio de Azevedo
Moçambique, Portugal, França, 2011 - 85 min
 
02/12/2015, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique

A Colheita do Diabo
de Licínio de Azevedo, Brigitte Bagnol
França, Moçambique, 1988 - 52 min
03/12/2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique

Desobediência
de Licínio de Azevedo
Moçambique, 2002 - 92 min
04/12/2015, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique

A Bola | Eclipse | Acampamento de Desminagem
duração total da projeção: 90 min | M/12
05/12/2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique

Marracuene | Adeus RDA | A Árvore dos Antepassados
duração total da sessão: 118 min | M/12
01/12/2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique
Virgem Margarida
de Licínio de Azevedo
com Iva Mugalela, Hermelinda Cimela, Rosa Mário, Ana Maria Albino
Moçambique, Portugal, França, 2011 - 85 min
legendado em francês | M/12
com a presença de Licínio de Azevedo, projeção seguido de conversa com o realizador

Inspirado em factos verídicos, VIRGEM MARGARIDA é ambientado em Moçambique, em 1975, imediatamente após o fim da guerra, numa altura em que, integrando a vontade de fazer cumprir ideias revolucionários, as prostitutas de todo o país são enviadas para centros de reeducação em plena selva, sob a vigilância feroz de mulheres militares. Margarida, a virgem protagonista, é uma camponesa adolescente que também para aí segue, por engano. Trata-se de uma longa-metragem de ficção que lida com a memória da história moçambicana da segunda metade do século XX ocupando-se especialmente do que Licínio de Azevedo descreve como “os antagonismos da libertação” das mulheres em plena época revolucionária. A génese do filme surgiu ao realizador quando filmava o documental A ÚLTIMA PROSTITUTA (1999). VIRGEM MARGARIDA e A ÚLTIMA PROSTITUTA são apresentados conjuntamente numa outra sessão da retrospetiva (ver nota adiante).

02/12/2015, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique
A Colheita do Diabo
de Licínio de Azevedo, Brigitte Bagnol
França, Moçambique, 1988 - 52 min
legendado em português | M/12

É uma das primeiras obras de Licínio de Azevedo, iniciado na realização em meados dos anos oitenta, cerca de uma década depois da sua chegada a Moçambique onde se radicou em 1977/78 e esteve envolvido na singular experiência do Instituto Nacional de Cinema de que participaram Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean-Luc Godard. Na sua filmografia surge depois das curtas-metragens de ficção MELANCÓLICO e O POÇO (uma “ficção pedagógica” no caso de O POÇO). “A COLHEITA DO DIABO é a minha primeira grande experiência no cinema (…) em que pela primeira vez utilizei, além de atores de teatro, pessoas que não tinham nenhuma experiência [em cinema], sendo as personagens principais antigos combatentes, ex-guerrilheiros da FRELIMO que participaram na guerra pela independência” (Licínio de Azevedo). É uma ficção inspirada na história de uma aldeia moçambicana ameaçada pela seca, mas também por um bando de bandidos, e defendida por veteranos de guerra. O título refere as minas terrestres que, muito tempo depois do fim da guerra, continuaram a matar e a mutilar pessoas que pisavam o solo moçambicano. “O diabo plantou na nossa machamba e não precisa de chuva para fazer a sua colheita.”

03/12/2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique
Desobediência
de Licínio de Azevedo
com Rosa Castigo, Tomás Sodzai, Isabel José, Eliasse Sodzai
Moçambique, 2002 - 92 min
legendado em português | M/12

Construído nos limites do cinema documental e de ficção que constituem o território por excelência do cinema de Licínio de Azevedo, DESOBEDIÊNCIA é um título fundamental na filmografia do cineasta, e para além dela na do cinema africano. Foram muitos o que viram em DESOBEDIÊNCIA uma “obra inclassificável” ou “o documentário de um documentário ficcionalizado”. O realizador refere-o como um filme devedor da influência da passagem de Godard por Moçambique, designadamente da crença de JLG na reinvenção do cinema a partir das possibilidades tecnológicas do vídeo. Filmado em vídeo, a partir de acontecimentos verídicos e interpretado pelos seus protagonistas no papel de atores (a “personagem” do morto é interpretada pelo irmão gémeo do homem que morreu) trata-se da “reinterpretação” de uma história mas também da imbricação desta na experiência da rodagem do filme, simultaneamente o seu “making of” e a possibilidade de um terreno de catarse. O “enredo” segue a personagem de uma camponesa moçambicana acusada pela família do marido da responsabilidade do seu suicídio por recusa de obediência, do modo como esta se submete e é absolvida em dois julgamentos, face a um curandeiro e face a um juiz em tribunal. O filme tem segunda passagem na sala Luís de Pina a 28, às 18h30.

04/12/2015, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique
A Bola | Eclipse | Acampamento de Desminagem
duração total da projeção: 90 min | M/12

A BOLA
de Orlando Mesquita
Moçambique, 2002 – 5 min / legendado em português
ECLIPSE
de Licínio de Azevedo, Orlando Mesquita
Moçambique, 2002 – 25 min / legendado em português
ACAMPAMENTO DE DESMINAGEM
de Licínio de Azevedo
Moçambique, 2005 – 60 min / legendado em português

“Alguns combateram em lados opostos, na guerra recente que assolou Moçambique. Outros eram civis e o trabalho na desminagem foi uma opção ao desemprego, à criminalidade. Os longos períodos em que permanecem afastados das suas famílias, vivendo em tendas coletivas, e o facto de juntos arriscarem quotidianamente as suas vidas, fazem dos sapadores um grupo muito especial de homens.” A sinopse de ACAMPAMENTO DE DESMINAGEM esclarece o teor do filme em que, de novo, Licínio confronta a História e a realidade moçambicana contemporânea numa perspetiva que privilegia a voz da experiência individual, as pessoas que anonimamente as protagonizam. A BOLA e ECLIPSE foram ambos escritos por Licínio de Azevedo e Orlando Mesquita e produzidos por Licínio no contexto da série “Steps for the Future”. A SIDA é a questão presente em ambas as curtas, protagonizadas por crianças e adolescentes: no primeiro caso centrando-se no fabrico de uma bola de futebol como modo de aprender a usar preservativos; em ECLIPSE seguindo uma história de orfandade e procura de identidade
 

05/12/2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Espírito do Lugar: Licínio de Azevedo, Cineasta de Moçambique
Marracuene | Adeus RDA | A Árvore dos Antepassados
duração total da sessão: 118 min | M/12

MARRACUENE
Moçambique, 1991 – 43 min / versão portuguesa
ADEUS RDA
Moçambique, 1991 – 27 min / versão portuguesa
A ÁRVORE DOS ANTEPASSADOS
Reino Unido, 1994 – 48 min / legendado em português
de Licínio de Azevedo

Foi em MARRACUENE (retrato de uma aldeia abandonada pelos seus habitantes como símbolo de um país devastado pela guerra) que Licínio de Azevedo começou a encarar o terreno documental de um modo menos convencional do que o trabalho que se fazia no Instituto Nacional de Cinema: dando espaço às pessoas para se exprimirem como entendessem em frente à câmara numa “reinterpretação” do seu quotidiano; ensaiando aquela que é ainda hoje, como o próprio cineasta refere, a sua linguagem no cinema documental. ADEUS RDA ocupa um lugar importante na filmografia de Licínio, centrando-se no traumático processo de regresso de dezasseis mil moçambicanos ao seu país depois de uma década de vida (a de oitenta) como trabalhadores migrantes na então Alemanha de Leste. Como ADEUS RDA, filmado para a série da BBC “Developing Stories”, A ÁRVORE DOS ANTEPASSADOS segue igualmente a história de um regresso a Moçambique no termo de um afastamento prolongado: a de um jovem que em 1984 foi enviado para um campo de refugiados no Malawi à semelhança de um milhão e meio de moçambicanos ao longo dos quinze anos de guerra civil. Neste filme, a viagem do protagonista é a de uma tentativa de reconciliação com “a árvore dos antepassados”. Os filmes têm segunda passagem na sala Luís de Pina a 22, às 18h30.