CICLO
Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento


A  descoberta de um importante e singular, embora presentemente desconhecido, cineasta sueco é uma proposta de novembro na Cinemateca, resultante de um desafio ao programador Stefan Ramstead: ator-realizador nascido em Estocolmo, Erik Hampe Faustman (1919-1961) é autor de uma relevante obra, realizada entre as décadas de 1940 e 60, que se tem mantido genericamente ignorada. Os filmes que escreveu, dirigiu e em alguns casos interpretou cumulativamente com outros conhecidos atores – cujo trabalho ficou associado, por exemplo, ao cinema de Ingmar Bergman – distinguem-se por uma perspetiva social e politicamente empenhada em que pontuam personagens do povo. A Cinemateca mostra um núcleo de seis dos seus filmes num programa inédito organizado em colaboração com o Svenska Institutet, e em diálogo com o programador Stefan Ramstead. Ramstead estará em Lisboa para apresentar o cinema de Erik Hampe Faustman na sessão de abertura do programa, no dia 18 de novembro, em que é projetado Främmande hamn (“Porto Estrangeiro”, 1948). Dada a peculiaridade do programa, são suas as notas o texto seguinte, cujo título a Cinemateca adotou como o do Ciclo. Provenientes do arquivo sueco, as cópias a apresentar são materiais 35 mm, exceto FLICKAN OCH DJÄVULEN que é projetado em digital. Salvo alguma rara exceção não documentada, todos os filmes são apresentados pela primeira vez em Portugal.
 
Erik Hampe Faustman nasceu Erik Stellan Chatham em 1919, filho dos artistas Mollie Faustman e Ghösta Chatham. Estudou representação na escola do Dramatiska Teatern, atuou pela primeira vez em palco no mesmo ano, e fez a sua primeira aparição no ecrã em 1940. Três anos mais tarde, assinou o seu primeiro filme, ou melhor, dois filmes, como realizador: Natt i hamn (“Noite no Porto”) e Sonja. Com estes filmes iniciais, firmou os motivos e os temas recorrentes da sua obra, e também definiu o ritmo da sua produção. Na realização, foi ativo durante doze anos concluindo dezanove longas-metragens de ficção. A crítica notou de imediato o estilo do novo realizador. Natt i hamn foi descrito como um “retrato a cinzento numa perspetiva portuária e marítima sobre a vida e a morte e a sua insignificância”, enquanto Sonja lhe mereceu elogios por saber “representar a vida comum de pessoas comuns” melhor do que os seus pares mais velhos.
Se Faustman é hoje lembrado é como um realista politicamente empenhado. Ao lado de Alf Sjöberg e Ingmar Bergman, viu-se incumbido da missão de rejuvenescer o cinema sueco, desempenhando o papel do radical. Cumpriu esta promessa com filmes como Främmande hamn (“Porto Estrangeiro”, 1948), a história de um motim causado por razões políticas, a bordo de um navio destinado à Espanha fascista com uma remessa de armamento disfarçado de comida enlatada. Como cineasta de esquerda com um interesse profundo pela cultura russa e com o pathos social de um realista, Faustman podia ter-se tornado o proponente sueco de um cinema realista socialista.
O cineasta e escritor Ulf von Strauss foi o primeiro a escrever em retrospetiva sobre a obra de Faustman. Num artigo de 1975, descreve-o como “a única voz consciente, explícita e consistente da classe operária” no cinema sueco. Tendo assumidamente em mente os seus filmes da década de 1940, encara o que vê nestes termos: “o que resta do carácter de Hampe [nos filmes dos anos 1950] é a sua singular tendência para um tom vocal natural, uma característica sensibilidade para a linguagem coloquial e a vida quotidiana nas casas e nos lugares de trabalho suecos”. Sendo isto verdade: então e o resto? O que era novo, e supostamente atípico em Faustman, nos seus últimos filmes, geralmente olhados como os mais fracos?
O académico Per Vesterlund analisou os últimos trabalhos de Faustman e observa que diferem de facto dos trabalhos iniciais. Os ambientes sociais podem ser semelhantes, e os espaços distintivos e fechados são recorrentes tal como a sua insistência em representar esses ambientes e espaços em imagens pouco contrastadas. No entanto, um filme como Kvinnohuset caracteriza-se por planos mais longos e mais movimentos de câmara. Vesterlund observou que a duração média dos planos dos filmes de Faustman realizados na década de 1940 se encontrava entre os seis e os dez segundos, ao passo que os filmes realizados na década de 1950 tinham planos de uma duração média de quinze segundos. Também a câmara se tornou mais móvel nos últimos filmes. Isto não é, evidentemente, uma característica única de Faustman, mas é interessante questionar se foi uma mera adaptação à estética contemporânea ou, pelo contrário, um método dirigido à representação da vida naquela época particular.
Para a Suécia, como para muitos outros países, o fim da guerra mundial assinalou o início de uma era de crescimento económico e estabilidade política. Os sociais--democratas governavam desde 1932 e continuariam a governar até 1976, o que estava a transformar o país rumo aos ideais do seu modelo de Estado de bem-estar social Folkhemmet [conhecido além-fronteiras como modelo sueco]. No entanto, com esse modelo abandonaram a noção da luta de classes e procuraram uma política de consentimento em detrimento da dissidência. Faustman confessou ser um social-democrata. Mas seria a social-democracia dos anos 1950 a sua social-democracia? Kvinnohuset (1953) é de facto uma representação de como a segurança de um Estado social progressista não é remédio para a alienação. A complexidade formal dos seus últimos filmes pode bem ser vista como uma resposta a uma sociedade politicamente mais complexa. Esta fase final da filmografia revela que Faustman estava menos em linha com o realismo socialista do cinema de Leste do que com a tradição do que Thom Andersen e Nöel Burch chamaram os film gris, obras de cineastas da Hollywood pós-guerra que procuravam explicações para a miséria então contemporânea em fatores políticos, e não psicológicos.
Faustman morreu em 1961. Aos quarenta e dois anos, depois de anos de alcoolismo, o coração acabou por ceder. O quanto esse fim dependeu da deceção política e das dificuldades em encontrar financiamento para os seus filmes pode ser motivo de especulação. No entanto, a sua morte precoce parece estar de algum modo de acordo com o radical dos inovadores do cinema sueco. Adotou a cor do cinzento. Foi um fim que nem ele nem os seus produtores conseguiram tornar feliz.

Stefan Ramstedt
 
 
18/11/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento

Främmande Hamn
“Porto Estrangeiro”
de Hampe Faustman
Suécia, 1948 - 85 min
 
19/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento

Flickan Och Djävulen
“A Rapariga e o Diabo”
de Hampe Faustman
Suécia, 1944 - 90 min
20/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento

När Ängarna Blommar
“Quando os Prados Florescem”
de Hampe Faustman
Suécia, 1946 - 77 min
21/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento

Kvinnohuset
“Casa de Mulheres”
de Hampe Faustman
Suécia, 1953 - 88 min
22/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento

Cafe Lunchrasten
de Hampe Faustman
Suécia, 1954 - 80 min
18/11/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento
Främmande Hamn
“Porto Estrangeiro”
de Hampe Faustman
com Adolf Jahr, George Fant, Stig Järrel, Illona Wieselmann, Carl Ström
Suécia, 1948 - 85 min
legendado eletronicamente em português | M/12
sessão de dia 18 apresentada por Stefan Ramstedt, em inglês
A ameaça da guerra paira sobre o S/S Castor, e a tripulação impancienta-se com o próximo embarque de mercadorias. Quando os tripulantes sabem que, com um carregamento de “comida enlatada”, o destino do navio é Espanha, respondem com uma insubordinação. FRÄMMANDE HAMN foi estreado na época do florescimento do anti-comunismo e foi criticado como propaganda por altura da sua primeira apresentação pública em Cannes. Hoje é visto como o melhor filme de Faustman e Peter von Bagh descreveu-o como “uma combinação poderosa: classe operária grosseira e ’miserabilismo’, melodrama, romantismo revolucionário – tudo isto ao serviço do tema da luta de classes”.
 
19/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento
Flickan Och Djävulen
“A Rapariga e o Diabo”
de Hampe Faustman
com Kolbjörn Knudsen, Ingrid Brogström, Elsa Widborg, Tord Stäl
Suécia, 1944 - 90 min
legendado eletronicamente em português | M/12
A quarta longa-metragem de Faustman afastou-se das representações realistas dos ambientes da classe operária contemporânea. Ambientada no interior da Suécia do século XVII, é um filme centrado numa jovem habitada pelas forças do mal. Não obstante o estilo mais expressivo e a história de terror, a paleta continua a ser tipicamente cinzenta. A escuridão do filme está noutro lado, porventura no destino da mulher possuída. Um conto metafórico ou um exercício de estilo? Seja como for, o escritor e crítico Barbro Alving descreveu-o como “o mais relevante filme sueco desde a era do cinema mudo”. A apresentar em cópia digital.
 
20/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento
När Ängarna Blommar
“Quando os Prados Florescem”
de Hampe Faustman
com Sigurd Wallén, Dagny Lind, Birger Malmsten, Ludde Gentzel, Elsa Widborg, Doris Svedlund
Suécia, 1946 - 77 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O primeiro filme de Faustman à volta de um coletivo passa-se entre os chamados “statare”, trabalhadores agrícolas contratados que vivem em condições próximas da escravatura. o ator Sigurd Wallén regressa a este meio, que tinha habitado em muitos filmes dos anos 1930, mas frequentemente no papel do reformista, garantindo que o progresso acontece enquanto o sistema permanece. A aposta é maior em NÄR ÄNGARNA BLOMMAR, no qual os trabalhadores exigem o direito à greve. O filme de Faustman (“um As Vinhas da Ira sueco”, na expressão de um crítico) foi realizado apenas dois anos após esta forma de emprego ter sido interditada.
 
21/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento
Kvinnohuset
“Casa de Mulheres”
de Hampe Faustman
com Inga Tidblad, Eva Dahlbeck, Annalisa Ericson, Birgitta Valberg, Ulla Sjöblom
Suécia, 1953 - 88 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Ulla Isaksson deu a Faustman um novo motivo coletivo com o seu romance Kvinnohuset, baseado numa casa coletiva para mulheres. Com um elenco de monta, que inclui Inga Tidblad, Eva Dahlbeck e Annalisa Ericson, Faustman retrata uma forma contemporânea de alienação, recorrendo a planos mais longos, como se a fragmentação e individualização da modernidade exigissem um mais complexo tratamento formal – ou, como lhe chamou o crítico Bengt Idestam-Almquist, “um regresso aos férteis deuses do formalismo”.
 
22/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Erik Hampe Faustman – Divergência a Cinzento
Cafe Lunchrasten
de Hampe Faustman
com Lars Ekborg, Doris Svedlund, Annalisa Ericson, Nils Hallberg, Stig Järrel
Suécia, 1954 - 80 min
legendado eletronicamente em português | M/12
No início de 1952, a desconstrução dos bairros pobres e acidentados de Klara, no centro de Estocolmo, havia começado. No centro de CAFÉ LUNCHRASTEN está um café da zona, um lugar de encontro entre jornalistas, estudantes, pequenos bandidos e prostitutas. Em retrospetiva, um lugar onde pessoas de diferentes estratos sociais se encontravam, um lugar que não existe nos projetos dos planos de desenvolvimento da cidade moderna. CAFÉ LUNCHRASTEN pode parecer uma anedota cheia de sentido de humor, mas o tempo revelou o seu carácter melancólico.