CICLO
Luz e Espectros – Cinema de Weimar 1919-1933


O cinema alemão compreendido entre os anos de 1919 e 1933 da República de Weimar, entre as duas Guerras Mundiais e no período que contemplou a passagem do mudo ao sonoro, é historicamente reconhecido pela sua fertilidade experimental, energia artística e influência duradoura. Reconhece-se também que, na sua variedade, foi um barómetro da realidade convulsiva da época, vertendo a sua febril efervescência cultural, retratando-a social, económica e politicamente, mas também submergindo nela com uma rara acutilância que deu forma a poderosas representações da vulnerabilidade do presente e da sombra que pairava sobre o futuro.
A Alemanha devastada pela Primeira Guerra veria a instauração oficial da sua primeira República em agosto de 1919, na cidade de Weimar, com a adoção da lei constitucional, viveria uma realidade precária, conheceria a grave inflação que se abateu sobre o início da década seguinte, a crise económica, o desemprego avassalador. E uma surpreendente pulsão criativa nas artes, que absorveram o cosmopolitismo e a modernidade que simultaneamente construíam, inovando a expressão formal. No cinema, foi nesses anos fervilhantes e complexos a imagem da vanguarda, o centro de uma extraordinária liberdade criativa que marcou a História, e que seria brutalmente interrompida em todas as frentes com a ascensão do nazismo de Hitler ao poder em 1933.
Emigrados como tantos outros após essa data e marcados pela experiência do exílio, Siegfried Kracauer e Lotte H. Eisner são autores dos dois estudos sobre o cinema alemão que se tornaram clássicos da literatura de cinema. Kracauer publica o seu ensaio nos Estados Unidos, em 1947: From Caligari to Hitler A Psychological History of the German Film (de que não existe edição portuguesa) vê na produção alemã dos anos Weimar o perturbador reflexo que o “caligarismo” e o “expressionismo” testemunham como subterrâneas angústias germânicas. Em 1952, Eisner, então colaboradora da Cinemateca Francesa de Henri Langlois, publica O Ecrã Demoníaco As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo concentrando-se na análise de um núcleo de filmes que elege como representativos de uma época de exceção influenciada pelo teatro de Reinhardt e pela arte expressionista, e precisando que o seu demoníaco se distinguia de diabólico, devendo entender-se no sentido – poético – que os gregos e Goethe lhe atribuíam. Ambos os livros continuam a ser peças fundamentais da abordagem ao “cinema de Weimar” que nos últimos anos tem suscitado novos olhares, e a atenção que assinala o século cumprido entre 1919 e 2019.
Alimentada pela cultura germânica, pelas contradições da sua época e pelas novas oportunidades tecnológicas, portanto eminentemente moderna, a cinematografia alemã dos anos Weimar tem a riqueza plurifacetada do trabalho de uma série de protagonistas – realizadores, produtores, argumentistas, atores e técnicos, críticos e teóricos – e da sua própria variedade intrínseca: expressionista, “caligarista”, “de câmara”, realista, naturalista, sinfónica e urbana, disposta à comédia, à opereta, ao musical, à reconstituição histórica, ao travelogue, aberta ao “filme de montanha” ou à liberdade de costumes. Este programa dá visibilidade à projeção das sombras “expressionistas”, com as suas criaturas tremendas, sonâmbulas, possuídas, e a filmes que integram elementos da realidade que lhes era contemporânea, mais em linha com o movimento da “Nova Objetividade” da segunda metade dos anos vinte.
O Ciclo reúne títulos canónicos e obras que permaneceram menos ou nada visíveis e que têm sido resgatadas por restauros e reavaliações recentes; autores da grandeza radiosa de Ernst Lubitsch, Friedrich Wilhelm Murnau, Fritz Lang, Georg Wilhelm Pabst, Josef von Sternberg, nomes indissociáveis do cinema de Weimar como Arthur Robison, Karl Grune, Lupu Pick ou Joe May, e realizadores menos divulgados mas cujos filmes participam do fulgor cinematográfico alemão destes anos. É o caso de Alexis Granowsky, Eugen Schüfftan, Gerhard Lamprecht, Marie Harder, Peter Pewas, Richard Oswald, Werner Hochbaum, Wilfried Basse. De Robert Reinert, mostram-se os ainda pouco vistos NERVEN e OPIUM, de 1919 como o seminal CALIGARI, realizado por Robert Wiene, que abre o programa, e como A PRINCESA DAS OSTRAS, de Lubitsch, o último título a apresentar. Inclui-se o filme que documenta uma pioneira volta ao mundo automobilística e cinematográfica, IM AUTO DURCH ZWEI WELTEN, de Clärenore Stinnes e Carl-Axel Söderström. O filme-ensaio de Rüdiger Suchsland que no século XXI questiona o cinema “de Caligari a Hitler”, é igualmente apresentado: “O que sabe o cinema que, a nós, nos escapa?”
 
Vários dos filmes são apresentados pela primeira vez em Lisboa. Uma parte substancial das projeções de filmes mudos conta com a improvisação de música ao vivo pelos pianistas Daniel Bruno Schvetz, Filipe Raposo e João Paulo Esteves da Silva.
 
 
30/09/2019, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Luz e Espectros – Cinema de Weimar 1919-1933

Die Austernprinzessin
A Princesa das Ostras
de Ernst Lubitsch
Alemanha, 1919 - 58 min
 
30/09/2019, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Luz e Espectros – Cinema de Weimar 1919-1933
Die Austernprinzessin
A Princesa das Ostras
de Ernst Lubitsch
com Victor Janson, Ossi Oswalda, Harry Liedtke, Julius Falkenstein
Alemanha, 1919 - 58 min
mudo, com intertítulos em alemão legendados em inglês e eletronicamente em português
Acompanhamento ao piano por Daniel Bruno Schvetz
Se THE MARRIAGE CIRCLE (1924) foi o filme americano que crismou o “Lubitsch touch”, de 1919, alemão (como DIE PUPPE ou MADAME DUBARRY), A PRINCESA DAS OSTRAS foi considerado pelo próprio Lubitsch o primeiro filme indicativo do seu estilo pessoal em esboço. Ele está na caraterização da personagem da caprichosa “princesa”, a filha mimada de um milionário americano, e na fabulosa construção do argumento, uma comédia em quatro atos, ou ainda, no erotismo da cena do banho de Ossi e na imagem voyeur da espreitadela num buraco de fechadura. Lubitsch, que trabalhara como ator sob a direção de Max Reinhardt poucos anos antes e que em 1922 seguiria para os Estados Unidos, era então apelidado “o realizador americano de Berlim”. Sem que a cidade seja identificada, é aí que é filmada esta história em que dinheiro e decadência andam a par e a agitação social se faz sentir. E em que são visíveis admiráveis “coreografias de multidão”, como a sequência do baile paralelamente filmado nos passos distintos dos senhores e dos criados de uma mesma mansão. A apresentar em cópia digital.