CICLO
A Noite


A noite, esse espaço de tempo em que a cada 24 horas por obra e graça da rotação da Terra o Sol está abaixo da linha do horizonte e a escuridão domina acalmando ou despertando a imaginação ou a melancolia, é um motivo clássico, na literatura, na música ou na pintura. É de representações no cinema que trata este Ciclo a ela dedicado, em variações noturnas e notívagas, movidas por impulsos afins. É a noite repleta de histórias, devaneios, confissões ou intimidades inconfessáveis, febre, poesia, susto, aventuras reais e sonhadas, sombras escuras, cintilações, rasgos luminosos, espaços compostos a escuro, figuras errantes, personagens acordadas. É a energia da noite, libertada por sobressaltos amantes, boémios, temperamentais, enredados à superfície, mergulhados em profundezas. São noites de expressão intimista – os noturnos, e de vida entre crepúsculos – os notívagos.
Este Ciclo A Noite convoca géneros clássicos, tão clássicos como a comédia, o musical e o western, e evidentemente o urbano noir, por onde passa o crime, nem sempre o castigo, na sua essência hollywoodiana e na transfiguração de universos pessoais, também de vanguarda, modernos e contemporâneos; reúne olhares livres, burlescos, de opereta, diletantes, contemplativos, emocionais, apocalípticos de vertente romântica, como a dos vampiros apaixonados para os quais há aqui lugar; atravessa sensivelmente um século, entre o XX “do cinema” e o presente XXI, em latitudes e temperaturas de gama distinta.
A nota de fantasia musical e de coreografia dançada dos filmes de Walter Ruttmann (IN DER NACHT, 1931) e de Maya Deren (INTO THE NIGHT, 1959) é a tónica do programa, composto no gosto pela noite, pelos da noite. O divertimento de Chaplin ainda a desenhar a personagem de Charlot (THE ROUNDERS, 1914) tropeça na vadiagem, cujo bom espírito se encontra no último filme de Bruno de Almeida (CABARET MAXIME, 2018), lisboeta como a noite branca de João César Monteiro em que um recanto da cidade antiga ecoa diálogos Guitar antes de se fazer ouvir (PASSEIO COM JOHNNY GUITAR, 1995), para aqui fazer tangente com a materialidade de sons e imagens do que então era um espaço abandonado de Lisboa olhado por João Nisa (NOCTURNO, 2007), e com a especular visão de um anoitecer a Oriente por Chantal Akerman no mesmo ano e também dispensando as palavras (TOMBÉE DE NUIT SUR SHANGHAI, 2007). O poder singular do cinema encontra-se ainda em Marguerite Duras, que o casa com a palavra numa madrugada parisiense e na incursão que tende para o escuro (LES MAINS NÉGATIVES, 1979 e L’HOMME ATLANTIQUE, 1981).
Noutras noites parisienses, a inspiração de Robert Bresson em Dostoievski faz o retrato de um sonhador (QUATRE NUITS D’UN RÊVEUR, 1971), e é de personagens que encontram a volúpia quando sonham em voz alta num desacerto de códigos sociais que trata a verve de Sacha Guitry (DÉSIRÉ, 1931). Volve-se o drama em comédia, como na aparência faz Ingmar Bergman com os Sorrisos a partir de Shakespeare (SOMMARNATTENS LEENDE, 1955), e no tom em que Billy Wilder segue Shirley MacLaine e Jack Lemmon tão cheios de graça numa Paris de estúdio americano (IRMA LA DOUCE, 1963). O drama é grave na noite nova-iorquina de Monta Bell (AFTER MIDNIGHT, 1927), temperado pela leveza pré-código Hays nos turnos noturnos de William Wellman (NIGHT NURSE, 1931), surpreendente na deambulação londrina de Jules Dassin (NIGHT AND THE CITY, 1950), de sentimentos de desesperança em Michelangelo Antonioni (LA NOTTE, 1961); ronda a tragédia quando Federico Fellini filma Giulietta Masina em Roma à procura do amor verdadeiro (LE NOTTI DI CABIRIA, 1957); tem o estremecimento efervescente de Jean  Grémillon (DAÏNAH LA MÉTISSE, 1931).
A estrutura narrativa das Mil e Uma Noites serve um Pasolini sem Xerazade (I FIORE DELLE MILLE E UNA NOTTE, 1974) e, noutras histórias, o dispositivo da concentração da ação numa única noite aproxima o noir série B de Phil Karlson (99 RIVER STREET, 1953), a exaltação de Martin Scorsese (AFTER HOURS, 1985), uma elegia de Abel Ferrara (4:44 LAST DAY ON EARTH, 2011), o cinema de Michael Mann (COLLATERAL, 2004). É romanesco o filme do azul noturno de Robert Aldrich (THE LAST SUNSET, 1961), um western como o western arraçado de noir de Robert Wise (BLOOD ON THE MOON, 1948), que Robert Mitchum protagonizou antes de Charles Laughton lhe escrever “ódio” e “amor” nas mãos que assustam a infância (THE NIGHT OF THE HUNTER, 1955), tratando da natureza humana como dela se ocupa um pulo a Marte de matriz western (JOHN CARPENTER’S GHOSTS OF MARS, 2001) ou os vampíricos amantes de Jim Jarmusch (ONLY LOVERS LEFT ALIVE, 2013), ou ainda o retrato documental de Chet Baker por Bruce Weber (LET’S GET LOST, 1988). Raoul Walsh e Nicholas Ray têm títulos que confluem na ressonância (THEY DRIVE BY NIGHT, 1940; THEY LIVE BY NIGHT, 1949), reconhecendo-se a Ray a filiação noturna que leva à reincidência no Ciclo, com o “musical noir” que é um tratado da cor (PARTY GIRL, 1958).
Um reparo para notar que um Ciclo se traça com constrangimentos, sejam eles falta de cópias acessíveis ou excesso de projeções, de que são exemplo o raro SONO YO NO TSUMA ou “A MULHER DAQUELA NOITE”, realizado em 1930 por Yasujiro Ozu, e o intensamente escuro, muito mostrado e sempre por boas razões, THE LEOPARD MAN de Jacques Tourneur, de quem também não é possível apresentar NIGHTFALL. O mapa desta Noite, assim desdobrado, tem múltiplas linhas, algumas das quais as notas seguintes esclarecem filme a filme. O encontro faz-se nas sessões das salas da Cinemateca, mas também nas projeções especiais ao ar livre em 35 mm na Esplanada, às sextas-feiras e sábados a partir das 22h30. Tomando palavras de filmes de Fernando Lopes, pelo puro prazer, que caia a noite.
 
 
09/07/2019, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Noite

Irma la Douce
Irma la Douce
de Billy Wilder
Estados Unidos, 1963 - 142 min
 
09/07/2019, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Noite

The Very Eye of Night | Daïnah la Métisse
duração total da projeção: 65 min | M/12
10/07/2019, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Noite

Collateral
Colateral
de Michael Mann
Estados Unidos, 2004 - 120 min
12/07/2019, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Noite

Collateral
Colateral
de Michael Mann
Estados Unidos, 2004 - 120 min
15/07/2019, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Noite

Le Notti di Cabiria
As Noites de Cabíria
de Federico Fellini
Itália, 1957 - 110 min
09/07/2019, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Noite
Irma la Douce
Irma la Douce
de Billy Wilder
com Shirley MacLaine, Jack Lemmon, Lou Jacobi
Estados Unidos, 1963 - 142 min
legendado em português | M/12
Proibido em Portugal até ao 25 de abril, IRMA LA DOUCE foi também um “caso” no seu país de origem. Apesar de já se estar em 1963 e de a censura andar a ser “batida” aos pontos por realizadores rebeldes, a forma como se representaram as prostitutas a trabalhar, sem eufemismos para a profissão, foi considerada demasiada audaciosa. Mas todo o filme joga tanto com o que é mostrado como com o que é elidido no extraordinário bairro parisiense dos Halles reproduzido em estúdio por Alexander Trauner. IRMA LA DOUCE, uma das mais divertidas, irreverentes e provocantes comédias de Wilder, foi outro “prego” no caixão do código de censura, com Shirley MacLaine como prostituta, num dos papéis da sua vida, e Jack Lemmon inesquecível na figura do polícia-chulo que tem ciúmes de si mesmo. Os turnos e a exaustão noturnos da personagem masculina, que se desdobra num enigma clandestino, não são menos cintilantes.
 
09/07/2019, 18h30 | Sala Luís de Pina
A Noite
The Very Eye of Night | Daïnah la Métisse
duração total da projeção: 65 min | M/12
THE VERY EYE OF NIGHT
de Maya Deren
Estados Unidos, 1959 – 15 min / sem diálogos
DAÏNAH LA MÉTISSE
de Jean Grémillon
com Laurence Clavius, Charles Vanel, Habib Benglia
França, 1931 – 50 min / legendado eletronicamente em português

THE VERY EYE OF NIGHT é um ponto alto do cinema vanguardista de Maya Deren, que o estimava particularmente, e um filme que permanece relativamente secreto – “Um ballet da noite”: num fundo de noite estrelada, flutuam bailarinos que lembram figuras gregas em etéreas “imagens negativas”. Realizado entre 1952 e 1955, em colaboração com o coreógrafo Antony Tudor, e distribuído em 1959, quando foi lhe acrescentada a banda musical de Teiji Ito, é o último filme acabado de Deren. O notável Jean Grémillon foi um “realizador maldito” e um dos mais malditos dos seus filmes foi DAÏNAH LA MÉTISSE, que à época foi remontado contra a sua vontade e encurtado em quase meia hora, ficando truncado para sempre. Ainda assim, o que sobrou forma um filme extraordinário, todo ele passado a bordo de um luxuoso transatlântico, cujos elegantes protagonistas são um casal negro e em que a sequência de um insólito baile de máscaras destila o hipnotismo ilusionista que marca o filme. Daïnah, único papel no cinema de Laurence Clavius, é a perturbadora mulher que sucumbe ao próprio poder de sedução erótica.
 
10/07/2019, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Noite
Collateral
Colateral
de Michael Mann
com Tom Cruise, Jamie Foxx, Jada Pinkett Smith, Mark Ruffalo
Estados Unidos, 2004 - 120 min
legendado eletronicamente em português | M/16
Um taxista (Jamie Foxx) vê-se envolvido com um assassino (Tom Cruise), que aluga o seu veículo por uma noite, a fim de levar a cabo um “contrato” para abater uma testemunha, enquanto o primeiro procura, a todo o custo, frustrar-lhe as intenções. Um prodigioso exercício de suspense, filmado em vídeo digital com uma fotografia que trabalha as cores da escuridão e o que Mann referiu como o perturbador fenómeno da neblina e do luar de um anoitecer em LA, “esse tresloucado céu magenta de Los Angeles, quando as luzes de vapor de sódio fazem ricochete na camada de neblina (...) e a suavidade da iluminação magenta e laranja é muito alienante, muito atrativa e ao mesmo tempo solitária”. A apresentar em cópia digital.
 
12/07/2019, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Noite
Collateral
Colateral
de Michael Mann
com Tom Cruise, Jamie Foxx, Jada Pinkett Smith, Mark Ruffalo
Estados Unidos, 2004 - 120 min
legendado eletronicamente em português | M/16
Um taxista (Jamie Foxx) vê-se envolvido com um assassino (Tom Cruise), que aluga o seu veículo por uma noite, a fim de levar a cabo um “contrato” para abater uma testemunha, enquanto o primeiro procura, a todo o custo, frustrar-lhe as intenções. Um prodigioso exercício de suspense, filmado em vídeo digital com uma fotografia que trabalha as cores da escuridão e o que Mann referiu como o perturbador fenómeno da neblina e do luar de um anoitecer em LA, “esse tresloucado céu magenta de Los Angeles, quando as luzes de vapor de sódio fazem ricochete na camada de neblina (...) e a suavidade da iluminação magenta e laranja é muito alienante, muito atrativa e ao mesmo tempo solitária”. A apresentar em cópia digital.
 
15/07/2019, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Noite
Le Notti di Cabiria
As Noites de Cabíria
de Federico Fellini
com Giulietta Masina, François Périer, Franca Marzi, Amedeo Nazzari
Itália, 1957 - 110 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Cabiria, a mais chapliniana personagem de Fellini, foi também um dos mais célebres papeis de Giulietta Masina. André Bazin escreveu que LE NOTTI DI CABIRIA "rematava" o neorrealismo, "ultrapassando-o numa reorganização poética do mundo". Embebida de uma vontade de incorporar a realidade e o documento na ficção, de fundir o sublime e o prosaico, esta história da desgraçada prostituta Cabiria é vista, talvez paradoxalmente, como um filme-charneira na obra de Fellini, o ponto em que se começa a livrar da "narrativa tradicional" e do próprio "realismo" em sentido estrito. É um muito comovente filme, mas não um dos mais vistos Fellini na Cinemateca, onde foi projetado pela última vez em 2008.