CICLO
Manoel de Oliveira Integral – O Visível e o Invisível (I)


"Há coisas que são abissais e os abismos não se podem filmar, sugerem-se. Entre uma cena e outra pode ficar uma sugestão."
 
 Manoel de Oliveira, catálogo da Cinemateca Manoel de Oliveira,1981
 
"É aliás disso que eu gosto em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos que se banham na luz da sua ausência de explicação. É por isso que eu acredito no cinema."
 
Manoel de Oliveira em conversa com Jean-Luc Godard, Libération, setembro de 1983
 
Expressões como mistério, ocultação ou invisibilidade são frequentemente usadas perante uma obra cinematográfica em que a clareza e a visibilidade de determinados signos surge muitas vezes aliada à sua mais profunda ambiguidade, um cinema intimista que convida o espectador à reflexão sobre aquilo que vê e ouve e a preencher as elipses do que não é dito e não é mostrado, do que não podendo a imagem dar a ver, deve ocultar.  Em 2006, Manoel de Oliveira designou um filme de curta-metragem como DO VISÍVEL AO INVISÍVEL, título que nos serviu de inspiração para voltar ao seu cinema.
Este programa é a primeira verdadeira integral Manoel de Oliveira (1908-2015) na Cinemateca, iniciando-se na data do seu aniversário de nascimento, com NON OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR, para depois recuar aos começos e seguir a ordem de uma cronologia, que em dezembro termina com OS CANIBAIS (1988) e se prolonga ao mês de janeiro. Prevê-se uma edição alusiva no decurso do próximo ano. É simultaneamente a quarta integral na Cinemateca, depois de três outras retrospetivas necessariamente incompletas (as de 1981, 1988 e 2008) dado que Oliveira não cessou de filmar. Ao revisitar agora a totalidade da obra de Oliveira, espera-se deste programa que contribua para renovar olhares sobre a obra de um criador que, à revelia dos cânones, não conhecia limites para a criatividade e para a experimentação. De fora fica mais uma vez MIRAMAR, PRAIA DAS ROSAS, curta-metragem de 1938, de que se continua a desconhecer o paradeiro de qualquer material. OS CANIBAIS e O DIA DO DESESPERO (este último a programar em janeiro) são apresentados em cópias novas 35 mm. Pela primeira vez desde há muito tempo, O PÃO é apresentado na sua versão longa (de 1959), e numa cópia recém-restaurada pelo Arquivo da Cinemateca (a exibição da versão mais curta, de 1964, está prevista em janeiro). A retrospetiva abre-se a filmes em que Manoel de Oliveira participou como ator ou em que foi retratado.
Oliveira terminou o seu filme inaugural, DOURO, FAINA FLUVIAL (1931), ainda na época do mudo, com apenas 23 anos, altura em que no contexto da burguesia portuense se afirmava como desportista de renome, datando o último de 2014. Entre essas datas, mais de 60 filmes, longas e curtas-metragens, espelhando períodos produtivos com uma grande, involuntária, assimetria de intensidade. Muito do que sobre o cineasta foi escrito não cessa de salientar a excentricidade dessa longa história de “últimos filmes” e consequentes recomeços, associados aos grandes hiatos e silêncios daquela que se tem classificado como a primeira fase da obra de Oliveira, no arco temporal de 50 anos que culmina em 1971, altura em que, já com mais de 60 anos de idade, realiza O PASSADO E O PRESENTE e começa a filmar com inesperada regularidade. Entre os principais títulos desse primeiro período, marcado por um mais forte pendor documental, estão os muito distintos DOURO, FAINA FLUVIAL, O PINTOR E A CIDADE (1956) e ACTO DA PRIMAVERA (1963), mas também ficções como ANIKI BÓBÓ (1942) e A CAÇA (1964). Nos intervalos, muitos projetos que não passaram do papel, entre os quais "Angélica" (1952), só concretizado em 2010 como O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA.
Uma característica determinante da obra de Oliveira foi o desenvolvimento de uma prática acompanhada por uma profunda reflexão sobre o meio cinematográfico materializada nessa mesma prática. Um pensamento que evoluiu de uma crença inicial numa “especificidade" do cinema enquanto arte da imagem e da montagem (partilhada com as vanguardas contemporâneas de DOURO) para um cinema assente na força da palavra. Entre os títulos fundamentais que lançam as bases de um "sistema Oliveira" que perdurará muitos anos, não cessando de se renovar, estão O PINTOR E A CIDADE, a primeira obra que realiza a cores, e em que insiste pela primeira vez em planos propositadamente mais longos; ACTO DA PRIMAVERA, pelo modo como sublinha o artifício da representação e o cinema anuncia a sua presença material no momento em que se filma a si próprio, produzindo uma coalescência de tempos diferentes. Mas também O PASSADO e o PRESENTE e BENILDE OU A VIRGEM MÃE (1974).
O PASSADO E O PRESENTE inicia a referida segunda fase da obra de Oliveira e o seu crescente reconhecimento crítico (não isento de polémicas conhecidas), que se prolonga com BENILDE, AMOR DE PERDIÇÃO (1978) e FRANCISCA (1981). A designada “tetralogia dos amores frustrados” traduz a relação profunda que se estabelece daí para a frente entre cinema, literatura e teatro: as peças de Vicente Sanches e José Régio, os romances de Camilo Castelo Branco e Agustina Bessa-Luis, que acompanhará Oliveira durante muitos anos a partir de FRANCISCA, assim como o produtor Paulo Branco. Aos elaborados movimentos de câmara de O PASSADO E O PRESENTE, BENILDE contrapõe já a transição definitiva para um cinema assente na expansão da duração do plano, em que a câmara reconquista a imobilidade de um ponto de vista fixo, preservando a tão hierática relação com o teatro, que se prolongará ao longo da obra de Oliveira, assumindo diferentes configurações. Na sua teatralidade, estes e outros títulos tinham caminhado ao encontro do que de mais moderno se estava a fazer nessa altura no cinema. Como escreveu João Bénard da Costa sobre O PASSADO E O PRESENTE – “Era o filme mais moderno feito alguma vez em Portugal.”
Como todos os grandes artistas, Oliveira estabelecia uma conceção de mundo e uma obra imersa em contradições. Uma obra dominada por personagens sujeitas a destinos trágicos e a um desejo de absoluto, que as conduz frequentemente à morte. Personagens sublimes e perversas, que desde o precoce ANIKI BÓBÓ discorrem sobre as preocupações do cineasta, "sobre a noite e sobre as estrelas, sobre o diabo e as tentações." É assim que filma o charme discreto da burguesia nortenha do século XIX, como é assim que filma o povo ("o palco do povo"), a realidade, a cultura e a história portuguesa. Um mundo em que os atores, "no seu mistério essencial" (as palavras são do cineasta), representam um papel determinante quando dão corpo e voz às personagens: Leonor Silveira, Luis Miguel Cintra, Diogo Dória, Ricardo Trêpa ou Leonor Baldaque, para citar apenas alguns dos "modelos" da grande "família" do cineasta a que se juntam nomes como Bulle Ogier, Catherine Deneuve, John Malkovich, Michel Piccoli, Marcello Mastroianni, Michael Lonsdale, Jeanne Moreau ou Claudia Cardinale.
Escrevia Agustina Bessa-Luis em 2000: “Manoel de Oliveira não faz filmes continuamente para chegar à perfeição, mas porque ama o imprevisto, o desconhecido de cada trabalho. Ele tem ciúme do que lhe escapa em cada filme que faz, e por isso persegue de uma forma narcísica o que lhe foge”. É o que não cessam de provar as suas últimas longa-metragens: SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA (2009), O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA (2010) e O GEBO E A SOMBRA (2012).
"E a alma o que é?" "A alma é um vício", o vício que todos os filmes de Oliveira perseguem, como afirmou João Bénard da Costa a partir deste extraordinário diálogo de FRANCISCA. "Os abismos, as almas, os pensamentos não se filmam. Só se filma o que é fotografável e é por isso que eu não gosto de sair do concreto." Oliveira não filma almas, mas corpos que nos aparecem frequentemente como fantasmas, o visível e o invisível.
 
 
28/12/2018, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Manoel de Oliveira Integral – O Visível e o Invisível (I)

Mon Cas
O Meu Caso
de Manoel de Oliveira
França, Portugal, 1986 - 88 min
 
29/12/2018, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Manoel de Oliveira Integral – O Visível e o Invisível (I)

Os Canibais
de Manoel de Oliveira
Portugal, 1988 - 99 min | M/12
28/12/2018, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Manoel de Oliveira Integral – O Visível e o Invisível (I)
Mon Cas
O Meu Caso
de Manoel de Oliveira
com Bulle Ogier, Luis Miguel Cintra, Axel Bougousslavsky, Fred Personne
França, Portugal, 1986 - 88 min
versão original em francês, legendada eletronicamente em português | M/12
Baseado em José Régio (O Meu Caso), Samuel Beckett (Pour En Finir et Autres Foirades) e na Bíblia (Livro de Job), o filme, falado em francês, pertence à mesma vertente de OS CANIBAIS, que Oliveira realizou a seguir. No centro de tudo, está a representação, com a peça O Meu Caso de Régio mostrada sob três ângulos: em palco, em montagem acelerada e retomada, com toda a banda sonora, em marcha atrás. Segue-se, um quadro crepuscular da civilização moderna, sobre trechos do Livro de Job, terminando com uma recriação de Piero della Francesca.
 
29/12/2018, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Manoel de Oliveira Integral – O Visível e o Invisível (I)
Os Canibais
de Manoel de Oliveira
com Leonor Silveira, Luis Miguel Cintra, Diogo Dória
Portugal, 1988 - 99 min | M/12
Baseado na novela de Álvaro Carvalhal, este filme-ópera, inteiramente cantado, com música de João Paes, é dos mais livres de toda a obra de Oliveira. Versão irónica do tema dos “amores frustrados” que tanto ocupou o cineasta nos anos setenta, em que a perversão das relações amorosas e o sacrifício carnal são literalmente levados às últimas consequências. Também é um filme atravessado de uma ponta à outra por um dos temas obsessivos do realizador: a representação. Representação que passa de um tom macabro ao de um Carnaval. O trabalho foi distinguido com o prémio de melhor música do Festival Internacional de Sitges em 1989. A apresentar numa nova cópia 35 mm.