CICLO
Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento


O senegalês Djibril Diop Mambéty (1945-98) foi uma das personalidades mais fortes e originais a terem surgido em toda a história do cinema africano, que nasce tardiamente na primeira metade dos anos 60, na sequência das independências de numerosos territórios colonizados pela França e a Grã-Bretanha. Indo além do contexto africano, foi uma das personalidades mais livres entre os cineastas da sua geração no âmbito do cinema mundial. A sua originalidade começa com o facto de, embora consciente e orgulhoso de ser africano, ele nunca ter levado em conta nos seus filmes as questões de identidade cultural e de relação com as tradições que marcaram o cinema do continente por muito tempo. Como observou o crítico Sada Niang,numa África cujo discurso político estava obnubilado pela necessidade da modernização, o imperativo do desenvolvimento e a recuperação da pureza identitária, Mambéty preferiu retirar-se calmamente dessas prioridades para forjar uma linguagem cinematográfica construída sobre o quotidiano dos marginais e excluídos de toda a espécie(interesso-me por pessoas marginalizadas porque creio que contribuem mais para a evolução da sociedade do que os conformistas. As pessoas marginalizadas põem a comunidade em que vivem em contacto com um mundo mais vasto, observou ele). Isto se deve ao facto de, como observou o cineasta congolês Balufu Bakupa-Kanyinda, Mambéty sero produto de diversas culturas: erudita e popular, religiosa e pagã, teatral e literária, africana e ocidental, além dos westerns e filmes indianos da sua juventude.
A obra de Djibril Diop Mambéty totaliza cerca de sete horas de cinema e o seu filme mais célebre, TOUKI-BOUKI, tornou-se um clássico do cinema moderno, tendo sido objeto de restauro pela Martin Scorsese Foundation por ser considerado uma obra fundamental na História do cinema. Este filme, no entanto, foi pessimamente recebido à época no Senegal e o realizador foi objeto de furiosas polémicas, tendo ficado vinte anos sem filmar, antes de voltar a surpreender com HYÈNES. Filho de um sacerdote muçulmano, Djibril Diop (acrescentou posteriormente Mambéty ao seu nome em homenagem à sua avó), nasceu num bairro popular de Dakar e teve o seu primeiro contacto com o cinema na infância através da música dos filmes projetados em cinemas ao ar livre, cercados por uma vedação, nos quais ele não tinha dinheiro para entrar: Ouvi filmes durante muitos anos antes de vê-los. Para mim, tudo começou com a música dos westerns e o primeiro filme que vi foi precisamente um western”. Bom aluno, porém rebelde, abandonou o liceu aos dezasseis anos e pôs-se a viver entre a casa paterna (um dos seus irmãos, Wasis, tornar-se-ia um conhecido músico) e as ruas de Dakar, que passou a conhecer profundamente. Aos dezanove anos, graças ao auxílio do diretor do Centro Cultural Francês, realiza em casa o seu primeiro filme, BADOU BOY, que não teve difusão pública e cujo título retomaria na sua primeira longa-metragem. Neste período, Djibril Diop Mambéty trabalhou em teatro, como ator em peças de autores senegaleses e europeus (Shakespeare e Ionesco) e em 1966 teve lugar um acontecimento que mudaria a sua vida: o Festival de Artes Negras organizado pelo governo senegalês, de uma duração de três semanas, com a presença de artistas e intelectuais negros de vários continentes, com concertos, exposições, debates, teatro, cinema e dança. O contacto maciço com obras muito variadas de artistas e intelectuais negros de diversas épocas fê-lo perceber que fazia parte do povo que tinha participado efetivamente na construção de uma imensa civilização. Ter percebido isto abriu-me as portas do universo. Depois de uma brilhante curta-metragem, CONTRA’S CITY, em que observa com ironia os contrastes arquitetónicos e culturais da sua cidade natal, Mambéty estreou-se na longa-metragem com a segunda versão de BADOU BOY, história de um rapaz das ruas e das suas astúcias para sobreviver, contada de modo anárquico, num tom de comédia burlesca. Três anos depois, realiza TOUKI-BOUKI, apresentado na Quinzena dos Realizadores em Cannes e no Festival de Moscovo, ponto culminante da sua obra, mas que resultou num longo e cruel silêncio, o altíssimo preço que ele teve de pagar pela sua independência, de que foi tirado por Idrissa Ouedraogo, que o convidou a realizar o making of do seu YAABA, A AVOZINHA, intitulado PARLONS GRAND-MÈRE. O regresso de Mambéty à realização propriamente dita fez-se com HYÈNES, que adapta, num estilo muito diferente de TOUKI-BOUKI – grave e quase solene – A Visita da Velha Senhora, de Friederich Dürenmatt, para criticar o poder do dinheiro, mais exatamente o do Fundo Monetário Internacional e da servidão que impõe aos povos africanos e de outras regiões do mundo. A seguir, encetou uma trilogia sobre les petites gens, as pessoas de condição modesta, da qual só pôde realizar as duas primeiras partes: LE FRANC, em que retoma o tom algo burlesco de BADOU BOY, e LA PETITE VENDEUSE DE SOLEIL, que concebeu como uma homenagem à coragem das crianças que trabalham na rua para ajudar o sustento da família. Dotado de uma inteligência, uma independência de espírito e um talento excecionais, Djibril Diop Mambéty conhecia bem as realidades materiais do cinema, mas nunca deixou de abordar o seu trabalho com palavras de verdadeiro poeta: A matéria-prima do cinema é o desejo.
O cinema pode ser algo de grande, se não formos seus escravos. O seu ser é um vento, é preciso soprar na direção onde sabemos que há ventos.
É preciso influenciar a flor que parte o muro, é preciso dirigir-se à flor, pois só a flor tem o poder de tudo partir.
Ao longo dos anos, a Cinemateca Portuguesa apresentou filmes de Djibril Diop Mambéty, desde o longínquo 1995 no Ciclo “Cinemas de África” (TOUKI--BOUKI e LE FRANC), além de HYÈNES em 2011 (Ciclo “Um Toque de África”), voltando a programar mais uma vez TOUKI-BOUKI em 2014, no âmbito do Queer Lisboa, mas há muito tempo que se impunha uma retrospetiva integral da obra desta personalidade maior, de modo a oferecer aos espectadores uma visão de conjunto do seu percurso. Será publicado um volume da coleção Cadernos da Cinemateca.
 
13/12/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento

Contra’s City | Badou Boy
duração total da projeção: 83 min
18/12/2023, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento

Le Franc | La Petite Vendeuse de Soleil
duração total da projeção: 90 min
18/12/2023, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento

Parlons Grand-Mère | Hyènes
duração total da projeção: 144 min
13/12/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento
Contra’s City | Badou Boy
duração total da projeção: 83 min
legendados em inglês e eletronicamente em português | M/12
CONTRA’S CITY
de Djibril Diop Mambéty
Senegal, 1969 – 23 min

BADOU BOY
de Djibril Diop Mambéty
com Lamine Ba, Christophe Colomb, Aziz Diop Mambéty, Djibril Diop Mambéty, Langouste
Senegal, 1970 – 60 min

Estes dois filmes em que Djibril Diop Mambéty se estreia na realização são complementares, na medida em que a cidade de Dakar é não apenas o cenário como a coprotagonista da ação. Em CONTRA’S CITY, um casal de franceses percorre Dakar, com os seus edifícios administrativos de arquitetura tipicamente francesa e os seus mercados de rua tipicamente africanos, misturando em off comentários ingénuos e observações cruamente racistas, numa paródia do estilo dos filmes franceses de propaganda turística. O filme é uma crítica ferina, porém bem-humorada, à mentalidade colonialista. BADOU BOY é a primeira obra-prima no percurso de Djibril Diop Mambéty, que declarou que o protagonista tem muitas semelhanças com ele próprio. Trata-se de um périplo sem fim e sem desfecho de um rapaz que ganha a vida como pode pelas ruas de Dakar e é perseguido por um polícia desastrado e incompetente, de quem ele sempre consegue escapar. Por não ser trabalhador nem vítima, o protagonista destoa do cinema africano do período. A narrativa tem um tom burlesco e o próprio realizador tem um pequeno papel, numa personagem que é uma nítida alusão/homenagem a Charles Chaplin. A banda sonora - quase toda composta por música e sons de rua, com escassíssimos diálogos - excecionalmente densa e rica, tem um peso decisivo na estrutura e no ritmo narrativo, o que vem lembrar-nos que antes de ver filmes o futuro grande realizador ouvia-os. Primeiras apresentações na Cinemateca. A exibir em cópias digitais.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
18/12/2023, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento
Le Franc | La Petite Vendeuse de Soleil
duração total da projeção: 90 min
legendados em português | M/12
LE FRANC
de Djibril Diop Mambéty
com Madieye Massamba Dieye, Aminata Fall, Demba Bâ
Senegal/Suíça, 1994 – 45 min

LA PETITE VENDEUSE DE SOLEIL
de Djibril Diop Mambéty
com Lissa Baléra, Taïrou M’Baye
Senegal, Suíça, 1999 – 45 min

Estes filmes formam as duas primeiras etapas de uma trilogia sobre “as pessoas comuns” que a morte não permitiu que Djibril Diop Mambéty levasse a cabo (demasiado enfermo, não pôde participar da montagem de LA PETITE VENDEUSE DE SOLEIL e a distribuição do filme foi póstuma). Em LE FRANC, realizado na ressaca da brutal desvalorização em 50% do Franco CFA, a moeda das ex-colónias francesas, um homem que vive de expedientes ganha um grande prémio na lotaria, na primeira tiragem posterior à desvalorização. Neste filme, o realizador reata com a veia burlesca de BADOU BOY e a história desta personagem de looser que percorre diferentes bairros de Dakar tem um irónico desenlace feliz. Estreado no Festival de Roterdão dez meses depois da morte do realizador, LA PETITE VENDEUSE DE SOLEIL é o seu filme mais singelo, mas também o mais comovente. Uma garota com uma deficiência física que a obriga a usar muletas põe-se a vender nas ruas o jornal Le Soleil e tem de enfrentar a concorrência desleal dos rapazes que vendem o mesmo jornal. No desenlace não realista, ela e um amigo que a ajuda caminham rumo à luz. Primeiras apresentações na Cinemateca. A exibir em cópias digitais.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
18/12/2023, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Djibril Diop Mambéty – Cavalgar o Vento
Parlons Grand-Mère | Hyènes
duração total da projeção: 144 min
legendados em inglês e eletronicamente em português | M/12
PARLONS GRAND-MÈRE
de Djibril Diop Mambéty
Burkina Faso, 1989 - 34 min

HYÈNES
de Djibril Diop Mambéty
com Ami Diakhate, Mansour Diouf, Mamamadou Mahouredia Gueye
Senegal, Suíça, 1992 – 110 min

PARLONS GRAND-MÈRE é o making of de YAABA, A AVOZINHA, de Idrissa Ouedraogo, que num belo gesto de amizade convidou Djibril Diop Mambéty, afastado do cinema há quinze anos, a realizá-lo e a reatar com o ato de filmar. A principal diferença entre este making of e a maioria dos trabalhos do género é que não se trata de uma mal disfarçada peça de propaganda sobre um futuro filme, mas dos apontamentos de um observador altamente qualificado: era cineasta e africano. HYÈNES marca o verdadeiro regresso de Mambéty à realização e é uma adaptação de A Visita da Velha Senhora, de Friederich Dürenmatt, na qual uma mulher regressa à sua aldeia natal depois de muitos anos, para vingar-se de uma humilhação que sofrera no passado. O realizador explica que no seu filme uma mulher chamada Ramatou aparece com muitos milhões e pede a uma população paupérrima que faça um sacrifício. As pessoas aceitam, empurradas pela miséria e é por isto que Ramatou representa o Banco Mundial”. Na ótica de Mambéty, trata-se menos da história de uma vingança pessoal, do que do retrato de uma comunidade enfraquecida, em que todos parecem fechados por um muro invisível e é abalada pela perspectiva do dinheiro. O estilo deste filme que tem algo de testamento e libelo, é totalmente diferente do de TOUKI-BOUKI: de aéreo, o cinema de Djibril Diop Mambéty tornou-se terreno, de rápido tornou-se lento, de despreocupado tornou-se grave. A exibir em cópias digitais.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui