CICLO
JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita


É  em maio – “maduro maio” dizia Jorge Silva Melo a acertar a data para 2022 – que a Cinemateca volta integralmente à retrospetiva e à carta branca interrompidas poucos dias após o início, em março de 2020. Foi quando as palavras pandemia, confinamento romperam o vocabulário comum deste século, suspendendo, entre tantas coisas, a mais completa apresentação do cinema de Jorge Silva Melo. Pensadas com Jorge Silva Melo, as duas vertentes do programa vão, agora, realizar--se sem ele, contando com alguns dos seus cúmplices; apresentadas há dois anos como “Viver Amanhã como Hoje” e “Carta Branca 2020” têm, agora, por títulos “O Cinema de Jorge Silva Melo” (sublinhando a dimensão que persiste como a menos divulgada do seu raio de ação) e “Carta Branca sem Receita” (a partir do texto que então escreveu e foi distribuído). Aos programados em 2020 acrescem dois títulos, um deles A MINHA HISTÓRIA DO TEATRO, série de nove pequenos filmes entretanto realizados. Dos títulos da carta branca não é lamentavelmente possível mostrar, dada a impossibilidade de aceder a uma cópia neste momento, DOLGYE PROVODY / O LONGO ADEUS de Kira Muratova (1971). E apresenta-se, não em contrapartida mas pelo sentido que faz, um outro filme não prescrito, um filme “a mais” além dos vinte por ele escolhidos na carta branca: DESIGN FOR LIVING, o Lubitsch de 1932 que adapta o texto de Noël Coward de que Jorge Silva Melo cuidou na sua última encenação com os Artistas Unidos, que continuam. Vida de Artistas.
Contando com a colaboração preciosa dos mesmos Artistas Unidos, esta retrospetiva é pois uma integral da sua obra no cinema. Na Cinemateca, Jorge Silva Melo foi um protagonista presente, ante-estreou e acompanhou projeções e programas dos seus filmes (desde 1983, ano da ante-estreia da longa-metragem inicial PASSAGEM OU A MEIO CAMINHO), respondeu a cartas brancas, marcou sessões especiais. Em 2013, o Lisbon & Estoril Film Festival organizou uma primeira retrospetiva, ocasião em que foi publicado O Cinema de Jorge Silva Melo e os Sortilégios do Tempo, por Francisco Ferreira. Associada à presente retrospetiva, será lançado, pela Midas Filmes, a edição DVD de A. PALOLO: VER O PENSAMENTO A CORRER, completando a coleção de títulos dos “filmes de artistas” de Jorge Silva Melo. PASSAGEM OU A MEIO CAMINHO é apresentado numa muito recente cópia digital, tirada no laboratório da Cinemateca para permitir que o filme, de que continuam a procurar-se os negativos e de que não existem boas cópias no formato original em película, possa ser visto e visto em melhores condições. Está em preparação um catálogo, a publicar em breve. O texto que se segue retoma, com pequenas alterações, aquele que foi distribuído em março de 2020.
 

O CINEMA DE JORGE SILVA MELO

A escrita, o cinema, o teatro, são artes da vida de Jorge Silva Melo (1948-2022), homem que ocupou um lugar só dele na cultura em Portugal. Leitor, espectador, crítico, professor, autor, cronista, tradutor, ator, argumentista, realizador, dramaturgo, encenador, diretor artístico. A frase que acaba ali podia continuar substantiva. E chamar outra que referisse Lisboa, Londres, Paris, Berlim, Milão, Roma, pelo menos estas cidades, onde nasceu, estudou cinema, estagiou em teatro com Peter Stein e Giorgio Strehler, foi ator de Jean Jourdheuil, criou, trabalhou, conviveu, passeou. Em Lisboa, integrou o Grupo de Teatro de Letras entre 1967 e 1970, fundou e dirigiu, com Luis Miguel Cintra, o Teatro da Cornucópia entre 1973 e 1979; fundou a companhia Artistas Unidos em 1995 que também ela teve várias vidas com ele, diretor artístico e encenador frequente. “Ainda não acabámos”, escreveram na despedida.
Escreveu o libreto para uma ópera – Le château des Carpathes (baseado em Júlio Verne), de Philippe Hersant (1992). E peças – Seis Rapazes, Três Raparigas (1993) e António, Um Rapaz de Lisboa (1995), as mais recuadas; O Grande Dia da Batalha (a partir de Albergue Nocturno, Máximo Gorki, 2018), a mais recente. Entre o muito que traduziu, contam-se obras de Carlo Goldoni, Luigi Pirandello, Oscar Wilde, Bertolt Brecht, Georg Büchner, Lovecraft, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Harold Pinter, Heiner Müller. Por exemplo, A Máquina Hamlet, levado à cena do Teatro da Politécnica em 2020, a partir de uma tradução de Jorge com Maria Adélia Silva Melo, a irmã mais velha que o apresentou em criança a círculos de pensamento e ação cultural. São dados de referência obrigatória, os destes parágrafos, mesmo num texto não biográfico que sobretudo trata de cinema. Além de peças, publicou livros de crónicas. Dois deles discorrem memórias, regressam a escritos, ziguezagueiam com o tempo – Século Passado (2007) e A Mesa Está Posta (2019), em que fala na primeira pessoa das décadas vividas a pensar e a fazer, numa insistência feliz e teimosa, diz ele. Citava com gosto versos de O Conto de Inverno, de Shakespeare, “But such a day to-morrow as to-day,/ And to be boy eternal.”
Espectador de cinema desde novinho, sobre cinema começou a escrever no suplemento juvenil do Diário de Lisboa pelos 15 anos, antes do princípio na crítica na revista O Tempo e o Modo. Sucedâneo da cinefilia e da crítica, o percurso de Jorge Silva Melo no cinema inicia-se na passagem das décadas de 1970 e 1980, a assistir João César Monteiro nos iniciais SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN e QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO (1969/70), mas também Paulo Rocha (POUSADA DAS CHAGAS, 1971), António-Pedro Vasconcelos (PERDIDO POR CEM, 1972) e Alberto Seixas Santos (BRANDOS COSTUMES, 1974); a colaborar com Solveig Nordlund (MÚSICA PARA SI, 1978). Mais tarde, havia de ser argumentista de Rocha e da mais nova geração de Manuel Mozos, João Guerra, Pedro Caldas; ator, nos anos de 1980 e 90, de João Botelho, João César Monteiro, Alberto Seixas Santos, Paulo Rocha, Manoel de Oliveira, Christine Laurent, Vítor Gonçalves, José Nascimento, José Álvaro Morais ou Joaquim Pinto.
Na ficção, a solo, realizou cinco longas e uma curta-metragem entre 1980 e 2007: PASSAGEM OU A MEIO CAMINHO, dedicado aos realizadores João César Monteiro, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos, Alberto Seixas Santos e ao professor João Bénard da Costa, um ano depois do “episódico-teatral” E NÃO SE PODE EXTERMINÁ-LO? (correalizado com Solveig Nordlund, 1979); NINGUÉM DUAS VEZES; AGOSTO; COITADO DO JORGE; ANTÓNIO, UM RAPAZ DE LISBOA; A FELICIDADE, a curta-metragem com Fernando Lopes no papel protagonista. Manteve um trabalho ímpar na série de retratos dedicados a artistas plásticos, principiado com A. PALOLO: VER O PENSAMENTO A CORRER (1995). Por ordem de entrada filmográfica, os artistas de Jorge Silva Melo são Palolo, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, Nikias Skapinakis, Bartolomeu Cid dos Santos, António Sena, Ângelo de Sousa, Ana Vieira, José Guimarães, Sofia Areal, Fernando Lemos. No núcleo documental da sua obra, cabe ainda o filme sobre a Cooperativa de Gravadores Portugueses Gravura, um retrato de Glícinia Quartin, atriz e amiga com quem muito conversou, dois títulos que registam peças dos Artistas Unidos, o autorretrato AINDA NÃO ACABÁMOS, COMO SE FOSSE UMA CARTA.
Esse filme composto como uma carta a um jovem ator, que esteve para se chamar “os que vieram antes”, verte uma característica definidora do modo de estar e trabalhar de Jorge Silva Melo, um interlocutor cúmplice de gerações mais velhas e mais novas, um passador vigoroso no sentido que Serge Daney deu ao termo. A memória e a transmissão são pontos justamente vitais das longas de ficção de Silva Melo, menos vistas e menos bem vistas do que seria de crer. No tempo de que foram contemporâneas, atravessaram dificuldades de ordem vária, também de receção, que em alguns casos as arredaram das salas ou da visibilidade. São filmes em que Jorge Silva Melo entende ter-se detido no “momento da escolha”, em que a vida se define, deixando de poder ser outra coisa. São filmes a que importa o tempo que passa e os momentos de passagem. São filmes secretos de palavras, paisagens, personagens, atores à flor da vida. São filmes a rever.
 

CARTA BRANCA SEM RECEITA

A acompanhar a retrospetiva da sua obra, as 20 escolhas de Jorge Silva Melo em 2020, com a falha, por inacessibilidade de cópia de “O LONGO ADEUS”de Kira Muratova. E um 21º filme, um Lubitsch escolhido pela Cinemateca em raccord com a sua última encenação, Vida de Artistas, levada à cena pelos Artistas Unidos no palco do Teatro São Luiz, onde estreou a 23 de março último: DESIGN FOR LIVING. O texto de Jorge Silva Melo “Carta Branca Sem Receita”, divulgado em março de 2020, será publicado no catálogo.
 
 
17/05/2022, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita

Gravura: Esta Mútua Aprendizagem
de Jorge Silva Melo
Portugal, 2008 - 78 min | M/12
 
17/05/2022, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita

Man of the West
O Homem do Oeste
de Anthony Mann
Estados Unidos, 1958 - 98 min
18/05/2022, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita

The Patsy
Jerry, Oito e Três Quartos
de Jerry Lewis
Estados Unidos, 1964 - 98 min
18/05/2022, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita

Bartolomeu Cid dos Santos: Por Terras Devastadas
de Jorge Silva Melo
Portugal, 2009 - 62 min | M/12
18/05/2022, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita

Nikias Skapinakis: O Teatro dos Outros | Nikias Skapinakis (continuando)
duração total da projeção: 83 min | M/12
17/05/2022, 19h30 | Sala Luís de Pina
JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita
Gravura: Esta Mútua Aprendizagem
de Jorge Silva Melo
Portugal, 2008 - 78 min | M/12
O Cinema de Jorge Silva Melo
No núcleo das obras dedicadas a artistas, é o retrato de grupo de Jorge Silva Melo, respondendo a uma encomenda da Caixa Geral de Depósitos: fundada em 20 de julho de 1956 por um grupo de artistas e intelectuais, a Cooperativa de Gravadores Portugueses Gravura tem uma história que parte de “um momento único de camaradagem, aprendizagem, intercâmbio, um momento político na História das Formas”. É a história que o filme trata através de quase 30 depoimentos de conhecidos artistas plásticos portugueses: “a sua história, e as suas consequências, a sua origem nos movimentos de oposição à ditadura, numa improvisada garagem de Algés. E sobretudo, a necessidade que os artistas sentiram de aprender em conjunto, de se organizar, aprender e ensinar ao mesmo tempo.” Primeira exibição na Cinemateca.

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17/05/2022, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita
Man of the West
O Homem do Oeste
de Anthony Mann
com Arthur O’Connell, Gary Cooper, Jack Lord, John Dehner, Julie London, Lee J. Cobb
Estados Unidos, 1958 - 98 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Carta Branca sem Receita
O último grande western de Anthony Mann e, talvez, o mais pessimista dos seus filmes, onde deixa perceber a sensação de fim de um ‘’mundo’’ e de uma forma de viver. Admirável desempenho de Gary Cooper na figura de um antigo bandoleiro regenerado e que procura auxiliar uma comunidade (o mesmo tema de BEND OF THE RIVER) acabando por reencontrar-se com o passado e ajustar contas definitivas com ele.

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18/05/2022, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita
The Patsy
Jerry, Oito e Três Quartos
de Jerry Lewis
com Jerry Lewis, Ina Balin, Everett Sloane, Keenan Wynn, Peter Lorre, John Carradine
Estados Unidos, 1964 - 98 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Carta Branca sem Receita
Uma das obras-primas do realizador-ator Jerry Lewis, THE PATSY é uma sátira mordaz ao mundo do cinema (o título português indica-o jogando com o felliniano OITO E MEIO, do ano anterior). Jerry retoma uma personagem semelhante à de THE ERRAND BOY (1961) no papel de um mandarete de hotel que uma equipa do mundo do espetáculo escolhe para substituir a sua estrela recentemente falecida. Um dos mais estranhos e “destrutivos” dos seus filmes da década de 1960.

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18/05/2022, 19h30 | Sala Luís de Pina
JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita
Bartolomeu Cid dos Santos: Por Terras Devastadas
de Jorge Silva Melo
Portugal, 2009 - 62 min | M/12
O Cinema de Jorge Silva Melo
Bartolomeu Cid dos Santos (1931-2008) foi um dos muitos artistas exilados do século XX português. Radicado em Londres, ensinou na Slade School of Fine Art. Retrato de um pintor e gravador, cuja obra de extrema vitalidade mantém uma ligação profunda com Portugal. Jorge Silva Melo titula o filme a partir do célebre poema de T.S. Eliot, A Terra Devastada (1922) citando-o sobre imagens de atualidades da Europa trucidada pela Segunda Guerra Mundial. “Um mundo crepuscular, o do fim dos muitos impérios, será o mundo de Bartolomeu. Que, em 65, criou uma das primeiras metáforas contra o Poder Colonial Português, a gravura Portuguese Men of War. E que no fim da vida, com fúria visível e renovada vitalidade, se insurge contra a Nova Ordem Mundial.”

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18/05/2022, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
JSM: O Cinema de Jorge Silva Melo e Carta Branca sem Receita
Nikias Skapinakis: O Teatro dos Outros | Nikias Skapinakis (continuando)
duração total da projeção: 83 min | M/12
O Cinema de Jorge Silva Melo

Por razões relacionadas com a cópia disponível de Nikias Skapinakis (Continuando), não será possível apresentar esta curta-metragem como inicialmente previsto. Assim, na sessão de 18 de Maio, às 21h30, será exibido apenas o primeiro título previsto, Nikias Skapinakis: O Teatro dos Outros (2007, 60 minutos). Lamentando o sucedido, agradecemos a compreensão dos espectadores.
NIKIAS SKAPINAKIS: O TEATRO DOS OUTROS
de Jorge Silva Melo
Portugal, 2007 – 62 min

NIKIAS SKAPINAKIS (CONTINUANDO)
de Jorge Silva Melo
Portugal, 2012 – 23 min

O terceiro dos “retratos de artista” com que Jorge Silva Melo resgata a memória de alguns contemporâneos é dedicado a Nikias Skapinakis (1931-2020), um dos maiores pintores portugueses da segunda metade do século XX. A exposição “Quartos Imaginários” no Museu Vieira da Silva, em 2006, é um ponto de partida do filme, que conta com as participações do crítico de arte António Rodrigues e do realizador. É Silva Melo quem diz sobre Skapinakis: “Há no seu riso uma acidez luminosa. Ele não ri contra, não troça. Ri, proclamando uma distância entre si e ele próprio, uma elegância, talvez seja isso a melancolia.” Em 2012, por ocasião da exposição antológica “Presente e Passado. 2012-1950”, apresentada no Museu Coleção Berardo, JSM realizou um segundo filme de curta-metragem intitulado NIKIAS SKAPINAKIS (CONTINUANDO) em que prolonga aquilo que fez com o pintor em 2007. Em 2019, vários trabalhos depois, Nikias Skapinakis expôs em Lisboa, na Galeria do Teatro da Politécnica, e no Porto, na Galeria Fernando Santos, “Descontinuando: Pintura e Desenho 2018-2019”. Considerando que a curta-metragem de 2012 (primeira exibição na Cinemateca) circunscrevia o momento em que foi realizada, Skapinakis defendia que O TEATRO DOS OUTROS (que na Cinemateca apresentou ao lado de Silva Melo numa memorável sessão de 2009) era um filme muito importante para o conhecimento do seu trabalho.

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