CICLO
A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini


Como já tinha sido anunciado na sessão de antecipação em agosto, a Cinemateca co-organiza este ano com o festival Doclisboa duas extensas retrospetivas das obras de duas fundamentais realizadoras do cinema europeu. A retrospetiva dedicada a Cecilia Mangini era uma intenção antiga da Cinemateca e foi inicialmente pensada para ser feita na sua presença. A morte da cineasta italiana no início deste ano não o permitiu, mas o programa que agora será apresentado (porventura a retrospetiva mais extensa dedicada ao trabalho de Mangini alguma vez apresentado dentro ou fora de Itália) não deixará de tentar traduzir a importância do seu legado e a inconfundível singularidade da sua voz autoral. Da mesma geração de Mangini, mas com uma obra tematicamente e formalmente muito distinta (embora com a mesma capacidade de questionar as transformações sociais e o seu tempo através do cinema), a obra da alemã Ulrike Ottinger já foi objeto na Cinemateca num Ciclo organizado em 2003 que mostrou a componente mais relevante da sua filmografia até essa data. Nesta nova incursão pelo seu trabalho, que abarca desde o primeiro filme (LAOKOON & SÖHNE) até ao título mais recente (PARIS CALIGRAMMES, 2020), Ulrike Ottinger estará presente em Lisboa para apresentar várias das sessões do programa ao público português.
 
Ulrike Ottinger
 
Nascida em 1942, o itinerário de Ulrike Ottinger (que já tinha acumulado uma vasta experiência como fotógrafa e animadora de um cineclube antes da sua primeira experiência cinematográfica) é um dos mais longos e fascinantes entre os cineastas alemães da sua geração (a que pertencem Fassbinder, Wenders, Schroeter), que nos anos 70 faria renascer o cinema de autor alemão, dez anos depois das “novas vagas” terem alterado o cinema pelo mundo fora. Mas, contrariamente a outros companheiros de ge­ração, que foram integrados no sistema de distribuição do cinema de autor e muitas vezes passaram ao cinema mais abertamente comercial, Ottinger permaneceu fiel à sua atitude inicial e jamais quis passar para o outro lado, tendo assinado uma obra vasta e variada, dividida entre a ficção pouco ortodoxa e o documentário. Ottinger não quis sequer fazer “cinema de arte» e sim arte através do cinema, em filmes que são festas dos sentidos, encenadas com magnífica sensibilidade, jogos das ideias e do intelecto. Como refere Boris Nelepo, programador convidado pelo DocLisboa para organizar esta retrospetiva integral do trabalho de Ottinger (que se divide entre a Cinemateca Portuguesa, a Culturgest, o Cinema São Jorge e o Museu de Oriente, neste último sendo apresentada também uma exposição fotográfica com trabalhos de Ottinger feitos na Ásia), “os filmes de Ottinger fazem repetidamente a ponte entre o presente e o passado, estabelecendo um diálogo. Ela nunca se sente superior às épocas anteriores. É por essa razão que os seus filmes, inquestionavelmente subversivos, se afiguram particularmente libertadores hoje em dia, libertos que estão de qualquer moralismo ou didatismo. Aqui, o mundo supera qualquer esquema no que toca à complexidade, convidando-nos ao invés a olhá-lo de forma aventurosa e a moldar uma utopia através do cinema que acolha todos.”
Todos os filmes a exibir serão apresentados em cópias digitais restauradas sob a supervisão de Ottinger.
As notas sobre as sessões são da autoria de Boris Nelepo.
 
 
Cecilia Mangini
Com o apoio do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa

Cecilia Mangini (1927-2021), primeira mulher a afirmar-se no terreno até então exclusivamente masculino do documentário italiano, foi uma extraordinária intérprete da tendência do movimento transnacional que, nos anos 1960, levou este género cinematográfico a testemunhar com renovada atenção (e militância) sobre as principais questões trazidas pelas convulsões sociais e políticas dessa década. Particularmente atenta à rápida transformação de uma Itália tradicionalista pelo “milagre económico”, Mangini viu sempre o documentário como um instrumento transformador do nosso conhecimento do mundo. Depois de um muito interessante percurso anterior como fotógrafa influenciada pela street photography dos anos 1950 (prática que continuou sempre paralelamente ao seu trabalho cinematográfico), Mangini mostrou logo desde estes seus primeiros filmes um verdadeiro olhar de cineasta e um absoluto domínio da diferença trazida pela imagem em movimento (e pela sua articulação com o som nas suas várias componentes) relativamente à imagem fixa (e muda) do instantâneo fotográfico. Uma obra que só nos últimos anos tem conhecido um mais amplo reconhecimento e que terá aqui uma possibilidade de descoberta mais ampla pelo público português (à exceção de IGNOTI ALLA CITTÀ, STENDALI, LA CANTA DELLE MARANE, TOMMASO, LA BRIGLIA SUL COLLO e V&V todos os filmes são primeiras apresentações na Cinemateca). 
Elemento fundamental para compreender o seu trabalho e a sua personalidade, são as inúmeras colaborações que desde o início marcam uma filmografia que é tão relevante pelos filmes que realizou (ou co-realizou) como pela marca que deixou nos filmes de outros como argumentista, autora da ideia ou noutra qualquer função. Este Ciclo revela vários dos filmes mais importantes resultantes da privilegiada colaboração com Lino Del Fra (seu companheiro de vida), mas não pode infelizmente, por limitações de dimensão do programa ou de disponibilidade de cópias, abarcar muitos outros onde o seu contributo terá sido igualmente importante (casos de La VILLEGGIATURA de Marco Leto e REGINA COELI de Nino D’Allessandria, para referir só dois exemplos). Também importante para compreender o alcance de uma atitude permanente de comprometimento com a realidade do seu tempo e de vontade de intervenção na sociedade de uma forma mais direta, o modo como parte significativa da obra de Mangini é feita no contexto da produção televisiva italiana (de que este programa, sem ser exaustivo, retém talvez os exemplos mais interessantes).
Para a construção deste ambicioso programa dedicado à memória de Cecilia Mangini foi fundamental o contributo de Luciana Fina, a qual irá também conversar sobre essa extraordinária obra com o historiador de documentário Marco Bertozzi e apresentar as sessões que contarão com a presença dos realizadores que co-assinaram com Mangini os seus últimos filmes: Mariangela Barbanente (IN VIAGGIO CON CECILIA) e Paolo Pisanelli (DUE SCATOLE DIMINTICATE e IL MONDO A SCATTI).
21/10/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini

Bildnis Einer Trinkerin
“Bilhete sem Regresso”
de Ulrike Ottinger
RFA, 1979 - 108 min
21/10/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini

Berlinfieber – Wolf Vostell | Aloha | Die Betörung der Blauen Matrosen
duração total da projeção: 95 min | M/12
 
22/10/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini

Johanna d’Arc of Mongolia
de Ulrike Ottinger
RFA, 1989 - 166 min
 
22/10/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini

Curtas-metragens de Gian Franco Mingozzi, Lino del Fra e Cecilia Mangini
duração total da projeção: 71 min | M/12
22/10/2021, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini

Curtas-metragens de Lino del Fra e Cecilia Mangini
duração total da projeção: 86 min | M/12
21/10/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini
Bildnis Einer Trinkerin
“Bilhete sem Regresso”
de Ulrike Ottinger
com Tabea Blumenschein Lutze, Magdalena Montezuma, Nina Hagen
RFA, 1979 - 108 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Ulrike Ottinger

com a presença de Ulrike Ottinger
Chega a Berlim com um único objectivo em mente: beber até a morte. Três comentadores brechtianos observam--na atentamente: Senso Comum, Estatísticas Exatas e Questão Social. Este filme notável e belo é a primeira parte da trilogia de Berlim de Ottinger e foi um contributo feminista radical para o cânone do Novo Cinema Alemão. Ao mesmo tempo, é uma cápsula do tempo da Berlim dos anos 1970, um registo documental da sua cultura alternativa (veja-se a interpretação de Nina Hagen) e um passeio turístico pelos locais boémios mais importantes da cidade. Primeira apresentação na Cinemateca.

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21/10/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini
Berlinfieber – Wolf Vostell | Aloha | Die Betörung der Blauen Matrosen
duração total da projeção: 95 min | M/12
legendados em inglês e eletronicamente em português
Ulrike Ottinger

com a presença de Ulrike Ottinger
BERLINFIEBER – WOLF VOSTELL
“Febre de Berlim – Wolf Vostell”
de Ulrike Ottinger
RFA, 1973 - 11 min

ALOHA
de Ulrike Ottinger 
Alemanha, 2016 – 25 min

DIE BETÖRUNG DER BLAUEN MATROSEN
“O Feitiço dos Marinheiros Azuis”
de Ulrike Ottinger, Tabea Blumenschei
com Valeska Gert, Tabea Blumenschein, Wally Busch
RFA, 1975 - 49 min 
 
Em 1973, Wolf Vostell, um artista ligado ao Fluxus, criou um happening em que se pedia aos participantes para executarem uma série de ações rituais e obsessivas. Descrito por Ottinger como um registo daquilo a que Vostell chamou “des-col/agem-happening”, o filme ilustra o seu método criativo e é um acto surrealista, uma obra de arte independente e um objecto estranho. Ottinger viria a descrever o seu método como “fragmentos de realidade montados de forma invulgar”. ALOHA é uma dedicatória a Murnau e também a Gauguin, Matisse e os seus outros antecessores cujos corações e olhos se encantaram com culturas estrangeiras. Ao justapor excertos e material não utilizado de TABU a cenas dos seus próprios filmes, a realizadora estabelece um diálogo entre universos ficcionais afastados no tempo e no espaço. Em DIE BETÖRUNG DER BLAUEN MATROSEN, uma jovem mulher pássaro luta com outra mais velha. São observadas por dois marinheiros que se beijam diante de um cenário pintado que tem um rasgo que os transporta para o jardim das delícias terrenas. Uma metamorfose típica do trabalho inicial de Ottinger, em que a narrativa se desenvolve como uma colagem, se falam várias línguas, tudo é instável e se inverte o género de toda a gente. ALOHA é uma primeira exibição na Cinemateca.

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22/10/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini
Johanna d’Arc of Mongolia
de Ulrike Ottinger
com Badema, Lydia Billiet, Christoph Eichorn
RFA, 1989 - 166 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Ulrike Ottinger

com a presença de Ulrike Ottinger
Um grupo de europeus a viajar no transiberiano é feito prisioneiro por uma tribo mongol. A antropóloga Lady Windermere (Delphine Seyrig no seu último papel) tenta explicar o que se passa aos seus companheiros, mas sem grande sucesso. O filme é fundamental na filmografia de Ottinger: começa como uma ficção espetacular, mas transforma-se em documentário tal como a sua obra como um todo. O filme divide a sua filmografia em duas partes ao ligar os dois universos – não-ficção etnográfica e teatro exagerado – e desafia o eurocentrismo arrogante.

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22/10/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini
Curtas-metragens de Gian Franco Mingozzi, Lino del Fra e Cecilia Mangini
duração total da projeção: 71 min | M/12
legendados em inglês e eletronicamente em português
Cecilia Mangini

sessão com apresentação
LA TARANTA
de Gian Franco Mingozzi
Itália, 1961, 19 min

L’INCEPPATA
de Lino del Fra
Itália, 1960 – 10 min

LA PASSIONE DEL GRANO
de Lino del Fra, Cecilia Mangini
Itália, 1963 – 10 min

STENDALÌ (SUONANO ANCORA)
Itália, 1965 – 11 min

MARIA E I GIORNI
Itália, 1959 – 10 min

DIVINO AMORE
de Cecilia Mangini
Itália, 1964 – 11 min

Cecilia Mangini, Gianfranco Mingozzi e Lino del Fra fizeram parte da então nova geração do neo-realismo italiano. Entre os anos 1950 e 1960, inspirados pelas pesquisas do antropólogo Ernesto de Martino, os três criam uma série de investigações sobre as práticas tradicionais e rituais, tanto religiosos como pagãos, do interior de Itália. O género do documentário etnográfico é desafiado, explorando as suas fronteiras estéticas e políticas. LA TARANTA observa o mito pagão do Sul de Itália em que aqueles mordidos por uma aranha sofrem estranhos distúrbios físicos e mentais e são submetidos ao seu exorcismo pela igreja católica. Em L’INCEPPATA, Lino del Fra constrói uma reflexão sobre como o peso das tradições exerce um controlo social nas relações de amor e familiares a partir do costume antigo de uma aldeia da Calábria em que as jovens mulheres devem esperar secretamente que um tronco seja arrastado até à porta de sua casa, numa declaração simbólica de amor. Filmado na região de Lucani, na altura da colheita, LA PASSIONE DEL GRANO mostra como um antigo ritual  é ainda celebrado. Este documentário etnográfico esconde uma subtil condenação política das condições de trabalho dos agricultores e da sua pobreza no subdesenvolvido interior do Sul de Itália. MARIA E I GIORNI faz o retrato de uma mulher que vive numa quinta em Puglia. De carácter forte e impetuoso, ela não tem medo da morte e cultiva um laço profundo com a sua terra. Recusando utilizar as ferramentas tradicionais do cinema etnográfico, como a captação direta de som e a narração, Mangini delega em DIVINO AMORE à música de vanguarda de Egisto Macchi a contextualização do culto à imagem da Madonna preservada num santuário nos arredores de Roma: culto nascido nos tempos modernos no final da Segunda Guerra Mundial, incorporando liturgias arcaicas, agora alienadas.

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22/10/2021, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: Ulrike Ottinger e Cecilia Mangini
Curtas-metragens de Lino del Fra e Cecilia Mangini
duração total da projeção: 86 min | M/12
legendados em inglês e eletronicamente em português
Cecilia Mangini
LA SCELTA
Itália, 1967 - 13 min

V&V
de Lino del Fra
Itália, 1969 - 15 min

ESSERE DONNE
Itália, 1965 - 31 min

BRINDISI’65
Itália, 1967 - 16 min

TOMMASO
Itália, 1965 - 11 min
de Cecilia Mangini

Na década de 1960, a Itália sofreu uma profunda convulsão: económica, política e social. Uma sociedade maioritariamente agrária transformou-se com a industrialização em massa da produção e do consumo. Uma crise económica provocou uma consciencialização política dos trabalhadores. As estruturas familiares e os papéis de género começam a ser questionados. Mangini e Del Fra exploram as influências entre estas movimentações, as públicas e as íntimas. LA SCELTA é um filme delicado sobre a eutanásia: um jovem homem enfrenta a fase terminal da doença do seu pai e decide ajudá-lo a deixar de sofrer. Contudo, o pai está ainda ligado aos valores morais da sua geração e tem dificuldades em tomar uma decisão. Vítima da censura na altura do seu lançamento, ESSERE DONNE é um importante marco na filmografia de Mangini como o seu gesto mais radical no retrato da luta das mulheres operárias italianas. Uma forte e sincera investigação que antecipa o movimento feminista. Em V&V, um casal de jovens militantes apaixonados tenta vincular os seus ideais de luta ao quotidiano em conjunto. Uma reflexão sobre a tentativa de combinar amor, intimidade e revolução. BRINDISI acompanha os efeitos da construção da maior fábrica petroquímica da Itália naquela pequena cidade de tradição camponesa. Essa “catedral no deserto”, como Mangini a chamava, engole os seus trabalhadores numa teia de exploração. Os baixos salários e as más condições de trabalho não desencorajam aqueles desesperados por um emprego. TOMMASO  aborda a chegada da produção industrial em grande escala em Brindisi através dos olhos de um rapaz que sonha em tornar-se trabalhador da recém-inaugurada petroquímica Monteshell.

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