CICLO
O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)


Nos últimos anos, a par da regular divulgação de cinematografias e autores exteriores ao cânone mais estabelecido do cinema europeu, americano ou asiático, e continuando sempre também a rever ou interrogar esse cânone, temos, dentro desta última vertente, procurado iluminar melhor zonas ou períodos inteiros que, no seio de algumas das cinematografias mais conhecidas, têm aqui permanecido numa relativa sombra. Aconteceu isso por exemplo com o cinema alemão (República Federal no período 1949-63, programado em 2016, e Alemanha de Leste, em 2019), e é agora o caso da França de Vichy.
Os franceses costumam referir-se ao período da Segunda Guerra Mundial como “a Ocupação”, o que tem lógica: depois de nove meses – setembro de 1939 a junho de 1940 – da drôle de guerre (drôle no sentido de estranha e não de divertida), em que a França estava oficialmente em guerra com a Alemanha, sem que houvesse qualquer combate, o país foi atacado, rapidamente vencido e ocupado. Foi então dividido em duas partes, sendo a metade norte governada diretamente pela Alemanha, enquanto a metade sul, dita “Zona Livre”, era administrada por um governo francês fantoche instalado em Vichy e presidido pelo octogenário Marechal Philippe Pétain, governo este que colaborava com convicção com as forças alemãs na repressão às forças clandestinas de resistência (comunistas e gaullistas) e na perseguição aos judeus. Em novembro de 1942, depois de as forças aliadas libertarem o Magrebe, a Alemanha ocupou o resto do país, mantendo-se no entanto a ficção de um governo francês. O país seria libertado em agosto de 1944.
Durante o período da ocupação alemã foram realizados um total de duzentos e vinte filmes em França e este ciclo, que mostra exclusivamente filmes realizados entre junho de 1940 e agosto de 1944, dá um apanhado do que foi o cinema dito “de Vichy”, que ainda hoje continua a ser relativamente pouco conhecido. A partida para Hollywood dos três realizadores de maior prestígio (Jean Renoir, Julien Duvivier e René Clair) e das duas maiores vedetas (Jean Gabin e Michèle Morgan, cujos filmes viriam a ser proibidos no seu país natal e que fariam em Hollywood filmes de propaganda anti-Vichy) abriu espaço para a aparição de novos nomes (Jean Grémillon, Claude Autant-Lara, André Cayatte, Louis Daquin) e deu mais protagonismo a competentes realizadores que já tinham bagagem, como Christian-Jaque, Henri Decoin ou Georges Lacombe. No domínio do cinema, o fator mais importante do período foi o facto de os ocupantes alemães não terem a menor intenção de tolher a produção de filmes em França, muito pelo contrário. Em outubro de 1940, quatro meses depois da ocupação do país, é fundada em Paris a Continental Films, produtora com capitais alemães e dirigida por um alemão, destinada a produzir filmes de qualidade, a fazer o mesmo tipo de entretenimento que se fazia até então (a Continental produziu um total de trinta filmes, cinco dos quais estão incluídos neste ciclo). Além disso, empresas francesas como a Gaumont e a Pathé continuaram a produzir e os bem apetrechados estúdios de Joinville e Nice (o primeiro na zona ocupada, o segundo na “zona livre”) continuaram a funcionar. Grandes vedetas populares, como Arletty e Fernandel, trabalharam com frequência, assim como os numerosos e profissionalíssimos atores, atrizes e técnicos que compunham a grande “equipa” do cinema de França, com a óbvia exceção dos judeus. As duras realidades da ocupação do país (racionamento de comida e roupas, restrições à circulação de pessoas, trabalho obrigatório na Alemanha) aumentaram a procura pelo cinema como espaço de evasão mental, de “sonho”. A proibição total de filmes americanos fez com que durante quatro anos os franceses tenham visto quase exclusivamente filmes franceses. Tudo isto – a manutenção de uma indústria cinematográfica em moldes profissionais, com a continuação de todos os principais géneros praticados: filmes policiais, adaptações literárias, comédias mundanas, obras de fantasia, filmes com vedetas da canção – resultou numa série de obras muitas vezes de qualidade, como poderá constatar o espectador que acompanhar o ciclo. São filmes evidentemente escapistas e que também anunciam, no domínio da forma, grande parte do futuro cinema francês. De facto, mais do que um prolongamento do que se fazia nos anos trinta – período em que as convenções narrativas não eram muito rígidas – o cinema feito em França no período da Ocupação anuncia muito claramente aquele que se faria nos anos cinquenta, quando este cinema acabou por se enrijecer e tornar-se um tanto académico, fechando-se no que se chamou a Qualité Française. Nos filmes realizados durante a Ocupação, assim como nos que foram feitos nos anos cinquenta, os argumentos são muito bem construídos e a sedução visual é relativamente discreta. O desenrolar da ação depende muito mais dos diálogos do que no cinema americano e os principais atores, quase todos formados nos conservatórios de teatro, dominam com mestria longos e complexos diálogos e monólogos, muitas vezes debitados com rapidez e é nisto que reside grande parte do fascínio que exerciam sobre os espectadores. Estas características, difusas no cinema francês dos anos trinta, tomam forma definitiva no cinema feito durante o período da Ocupação, que definiu uma forma de classicismo no cinema francês ou um classicismo à francesa (com nítidas diferenças em relação ao cinema americano, britânico ou italiano), que teria prolongamentos durante muito tempo.
A escolha dos filmes que compõem este ciclo partiu do princípio de apresentar obras pouco conhecidas ou pouco vistas e por isto só foram programados três clássicos: LE CORBEAU, incontornável em qualquer ciclo sobre a Ocupação, LES ANGES DU PÉCHÉ e LES ENFANTS DU PARADIS, para assinalar o facto de estes dois filmes excecionais terem sido realizados durante este negro período. Apesar da presença de mais de um filme de alguns realizadores, a escolha obedeceu a uma orientação filmista e não autorista: mais do que mostrar filmes de tal ou qual cineasta a ideia foi propor um certo número de objetos cinematográficos precisos, de diversos géneros, que mostram que tipo de evasão cinematográfica era proposta aos habitantes da França ocupada pela Alemanha nazi, além de serem o embrião do cinema mainstream francês dos trinta anos que se seguem. No domínio da ficção, o cinema de Vichy em nada é um cinema de propaganda ideológica. Esta era feita, sem rebuços, nas atualidades cinematográficas e em curtos filmes apresentados na primeira parte do programa, antes da longa-metragem. Por isto, em contraponto às variadas ficções que compõem este ciclo, acrescentamos quatro curtas-metragens de propaganda, três do regime de Vichy e uma do movimento de resistência gaullista. Das vinte longas-metragens propostas, quinze são apresentadas pela primeira vez na Cinemateca.
Agradecemos a generosa colaboração de Gérard Courant, sem a qual este ciclo não teria sido possível.
 
20/09/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)

Premier de Cordée
de Louis Daquin
França, 1943 - 100 min
21/09/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)

Ceux du Maquis | Les Anges du Péché
duração total da projeção: 99 min | M/12
21/09/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)

Je Suis Avec Toi
de Henri Decoin
França, 1943 - 84 min
22/09/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)

Je Suis Avec Toi
de Henri Decoin
França, 1943 - 84 min
22/09/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)

Premier de Cordée
de Louis Daquin
França, 1943 - 100 min
20/09/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)
Premier de Cordée
de Louis Daquin
com André Le Gall, Irène Corday, Yves Furet
França, 1943 - 100 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Como Jean Grémillon, Louis Daquin era um cineasta de esquerda, membro do Partido Comunista e de movimentos de resistência, que começou verdadeiramente a sua carreira durante o período da Ocupação, quando realizou quatro filmes, o mais ambicioso dos quais é PREMIER DE CORDÉE (uma cordée é um grupo de alpinistas ligados por uma corda). Adaptado de um romance publicado em 1941, o filme conta a história de um jovem que, contra a vontade do pai, quer ser guia de alpinismo. É vítima de um acidente, depois do qual passa a sofrer vertigens, mas com tenacidade consegue vencer esta deficiência e atingir o seu objetivo. Paradoxalmente, este filme concebido como um secreto apelo à resistência, foi bem acolhido pelos partidários do regime de Vichy, devido ao espírito de sacrifício da personagem. Como indica o genérico, todas as cenas de exteriores na montanha foram realizadas “sem nenhuma trucagem”, na região do Monte Branco, nos Alpes, e esta opção realista torna-as absolutamente convincentes. Primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
21/09/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)
Ceux du Maquis | Les Anges du Péché
duração total da projeção: 99 min | M/12
CEUX DU MAQUIS
de realizador anónimo
França, 1944 – 8 min / legendado eletronicamente em português
LES ANGES DU PÉCHÉ
de Robert Bresson
com Renée Faure, Jany Holt, Sylvie, Mila Parély
França, 1943 –  91 min / legendado em português

Primeira longa-metragem de Bresson e um dos dois únicos filmes em que utilizou atores profissionais (o outro foi LES DAMES DU BOIS DE BOULOGNE). Bresson preferia “modelos” a atores, pois “nós somos complexos e aquilo que o ator mostra não é complexo.” Mas neste filme, como assinalou Jorge Silva Melo, as duas atrizes principais são modelos do “anjo” e do “pecado”. Esta história, situada num convento que se consagra à redenção das jovens perdidas, realizada com o rigor que caracteriza Bresson, aborda o tema central do seu cinema, o da Graça. Os diálogos são de Jean Giraudoux. A abrir a sessão, uma curta-metragem de propaganda da resistência gaullista, que sublinha a diferença entre o aspecto inclusivo da Resistência e a mentalidade excludente do regime de Vichy, pois os resistentes que vemos “vêm de todas as classes sociais e não têm província nem partido”. 

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de CEUX DU MAQUIS aqui

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de LES ANGES DU PÁCHÉ aqui
 
21/09/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)
Je Suis Avec Toi
de Henri Decoin
com Pierre Fresnay, Yvonne Printemps, Bernard Blier
França, 1943 - 84 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O argumento deste filme que o genérico define como uma fantasia musical, parece saído de uma screwball comedy americana dos anos trinta: uma mulher finge que é outra para seduzir o próprio marido. Entretanto, o melhor amigo do marido, que confessa a este que sempre fora apaixonado pela mulher dele, corteja abertamente a “outra” que é a mesma, criando um autêntico triângulo. Tudo se passa, como é regra neste tipo de histórias, num ambiente de luxo e despreocupação, num filme ágil cujo mecanismo narrativo é perfeito, desenrolando-se como um ágil turbilhão, entremeado com algumas canções (Yvonne Printemps, a protagonista feminina, era uma célebre cantora de operetas), uma das quais nas montanhas russas de uma feira popular. No desenlace, o marido declara: “Agora conheço as duas metades da minha mulher”. Um filme surpreendente, em primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

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22/09/2021, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)
Je Suis Avec Toi
de Henri Decoin
com Pierre Fresnay, Yvonne Printemps, Bernard Blier
França, 1943 - 84 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O argumento deste filme que o genérico define como uma fantasia musical, parece saído de uma screwball comedy americana dos anos trinta: uma mulher finge que é outra para seduzir o próprio marido. Entretanto, o melhor amigo do marido, que confessa a este que sempre fora apaixonado pela mulher dele, corteja abertamente a “outra” que é a mesma, criando um autêntico triângulo. Tudo se passa, como é regra neste tipo de histórias, num ambiente de luxo e despreocupação, num filme ágil cujo mecanismo narrativo é perfeito, desenrolando-se como um ágil turbilhão, entremeado com algumas canções (Yvonne Printemps, a protagonista feminina, era uma célebre cantora de operetas), uma das quais nas montanhas russas de uma feira popular. No desenlace, o marido declara: “Agora conheço as duas metades da minha mulher”. Um filme surpreendente, em primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
22/09/2021, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema de Vichy – A França Ocupada (1940-44)
Premier de Cordée
de Louis Daquin
com André Le Gall, Irène Corday, Yves Furet
França, 1943 - 100 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Como Jean Grémillon, Louis Daquin era um cineasta de esquerda, membro do Partido Comunista e de movimentos de resistência, que começou verdadeiramente a sua carreira durante o período da Ocupação, quando realizou quatro filmes, o mais ambicioso dos quais é PREMIER DE CORDÉE (uma cordée é um grupo de alpinistas ligados por uma corda). Adaptado de um romance publicado em 1941, o filme conta a história de um jovem que, contra a vontade do pai, quer ser guia de alpinismo. É vítima de um acidente, depois do qual passa a sofrer vertigens, mas com tenacidade consegue vencer esta deficiência e atingir o seu objetivo. Paradoxalmente, este filme concebido como um secreto apelo à resistência, foi bem acolhido pelos partidários do regime de Vichy, devido ao espírito de sacrifício da personagem. Como indica o genérico, todas as cenas de exteriores na montanha foram realizadas “sem nenhuma trucagem”, na região do Monte Branco, nos Alpes, e esta opção realista torna-as absolutamente convincentes. Primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

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