CICLO
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola


Na conclusão do Ciclo iniciado em abril com Moçambique e continuado em maio com a Guiné--Bissau, “Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado” será em novembro dedicado ao cinema de Angola. Convidada a coprogramar com a Cinemateca as três partes deste programa, a investigadora Maria do Carmo Piçarra assina o texto de apresentação do Ciclo que se segue bem como as notas sobre todas as sessões do programa.
 
Quando o cineclubismo contribuiu para propor a criação de um cinema angolano, Manuel Faria escreveu, em 1964, na Diálogo, revista do Cine Clube do Huambo, que era preciso “Um cinema que não mostre caçadores; nem canibalismos nem selvajarias. Nem mostre o negro para fazer rir. Nem como bom rapaz estereotipado. Nem cinema paternalista. Nem cinema de turistas”.
Rompendo definitivamente com as representações colonialistas do cinema de propaganda do Estado Novo, MONANGAMBÉ, da francesa Sarah Maldoror, é o primeiro filme de ficção angolano. Adaptação de O Fato Completo de Lucas Matesso, de Luandino Vieira, centra-se na violência da prisão colonial e no desconhecimento, pelos portugueses, da cultura local. Alinhado com o internacionalismo cinematográfico de então, foi filmado próximo de Argel com atores não profissionais, e incluiu música improvisada pelo Art Ensemble de Chicago além de, no genérico final, uma montagem de fotografias de Augusta Conchiglia. Após a publicação em França, em 1971, de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de novo de Luandino Vieira, Maldoror filmou a sua adaptação para cinema, SAMBIZANGA, longa-metragem rodada durante sete semanas em Brazzaville. Elisa Andrade repetiu a colaboração com Maldoror, interpretando Maria, e a realizadora deu então relevo ao papel das mulheres na luta pela libertação, gerando polémica.
Só pouco antes da independência, em 11 de novembro de 1975, foi possível iniciar, em Angola, a formação de técnicos de cinema. A cooperativa Promocine e a televisão, deixada pronta a funcionar pelos portugueses, acolhem então interessados em fazer televisão e cinema, aos quais se juntam a equipa Angola Ano-Zero, constituída no início de 1975. Na Televisão Popular de Angola (TPA) há formação em imagem, som e laboratório dada, entre outros, por três franceses da Unicité – ligados aos grupos Medvedkine e colaboradores de Jean-Luc Godard, Jean Rouch e Chris Marker –, o diretor de fotografia Bruno Muel, o engenheiro de som Antoine Bonfanti e o jornalista Marcel Trillat, em Angola a convite de Luandino Vieira, responsável pelas políticas para o cinema. Duarte de Carvalho torna-se quadro da TPA e filma a reportagem televisiva fixando as expectativas e tensões nos 15 dias que antecedem a independência, UMA FESTA PARA VIVER.
Em 1976/77 haverá nova formação dada pelo Instituto Cubano de Rádio e Televisão. O historiador angolano Mena Abrantes considera que "Do mesmo modo que o foram Carlos Sousa e Costa na Promocine, António Ole e Ruy Duarte na TPA, Francisco Henriques na equipa Ano Zero, Asdrúbal Rebelo (n. 1953) é o realizador mais destacado desse novo grupo" (2015: 17). Até 1985, serão eles a animar a criação de uma cinematografia angolana.
O cinema feito era sobretudo político, e numa incursão no documentário cultural quase isolada, quando domina o "cinema direto", António Ole realiza CARNAVAL DA VITÓRIA e O RITMO DO NGOLA RITMOS, celebrando expressões de resistência cultural ao colonialismo. Asdrúbal Rebelo opta pela via do documentário social interessando-se pelos problemas infantojuvenis em obras como NASCIDOS NA LUTA, VIVENDO NA VITÓRIA.
Após 1985 a produção entrou num impasse criativo e produtivo até 2000. A guerra e a falta de fundos justificam o desinvestimento estatal. Muitos realizadores abandonaram atividade ou emigraram. Em 1999, o Instituto Angolano de Cinema e o Laboratório Nacional de Cinema são extintos, mas o cinema angolano resistiu, fora de Angola sobretudo. Mariano Bartolomeu, após formação em Havana, assinou documentários e curtas-metragens como UM LUGAR LIMPO E ILUMINADO e QUEM FAZ CORRER QUIM?. Zezé Gamboa impôs-se como realizador em França e Portugal, na década de 90, e Pocas Pascoal, antiga operadora de câmara da TPA, forma-se em montagem em França, realizando várias curtas-metragens e documentários antes de assinar, em 2011, a primeira ficção, POR AQUI TUDO BEM, inspirada no exílio durante a adolescência.
Em 2002, o governo apoiou a produção com um milhão de dólares, beneficiando Orlando Fortunato, Maria João Ganga e Zezé Gamboa. Tal é determinante para Orlando Fortunato terminar COMBOIO DA CANHOCA, para Maria João Ganga – com formação em cinema em Paris e, após ser assistente de direção em ROSTOV-LUANDA (1998), de Abderrahmane Sissako – se estreie com NA CIDADE VAZIA, e para que Zezé Gamboa dirija O HERÓI.
O lançamento simultâneo, em 2004, de COMBOIO DA CANHOCA, NA CIDADE VAZIA e O HERÓI foi um marco na projeção do cinema angolano. COMBOIO DA CANHOCA retrata a brutalidade da polícia política portuguesa através da história de Njololo, cuja mulher é violada pelo Cabo Faria. Filme que assinala, no grande ecrã, o fim da guerra civil, NA CIDADE VAZIA dramatiza a história de órfãos de guerra que viajam para Luanda com uma freira. Aí chegados, N’dala escapa-se para conhecer a cidade cemitério de ilusões revolucionárias, onde tem encontros perigosos e fascinantes. Estreia na longa-metragem de ficção de um técnico pioneiro, Zezé Gamboa, O HERÓI alcançou notoriedade em festivais como Sundance, onde ganhou o Grande Prémio do Júri.
Em julho de 2005, no I Encontro Nacional de Cinema, Audiovisual e Multimédia, faz-se o diagnóstico da produção, distribuição, exibição e conservação de cinema, reconhecendo-se o colapso. Fazem-se promessas de investimento, mas o dinamismo não teve continuidade. Após 2006, o aumento de filmes é fruto da iniciativa privada. É neste contexto que Ondjaki e Kiluanje Liberdade, realizador de documentários reconhecido em Portugal, realizam OXALÁ CRESÇAM PITANGAS, documentando como, no pós-guerra civil, em Luanda, habitada por 600 mil pessoas antes da independência, (sobre)vivem agora quase quatro milhões.
Nos últimos anos, destaque-se a atividade da produtora Geração 80, que ganhou destaque com a realização de INDEPENDÊNCIA (2015), que preservou testemunhos dos protagonistas da libertação. Independente dos apoios estatais, produz obras com grande coerência estética, e, através de um realismo que muitos têm considerado “realismo mágico”, retrata a realidade urbana. Luanda é personagem principal, cenário povoado de figuras marcantes, em luta para, no quotidiano, superar os desafios constantes de uma cidade hiper-povoada. As obras de estreia na ficção de Fradique, AR CONDICIONADO, e de Ery Claver, NOSSA SENHORA DA LOJA DO CHINÊS, têm tido distribuição internacional e são a evidência que o futuro “sempre adiado” do cinema angolano, como diagnosticou Mena Abrantes, já é presente.

Maria do Carmo Piçarra
 
 
12/11/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola

Carnaval da Vitória | O Ritmo do Ngola Ritmos
 
13/11/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola

Monangambé | Sambizanga
14/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola

Uma Festa Para Viver | Nelisita
15/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola

Nascidos Na Luta, Vivendo Na Vitória | Um Lugar Limpo e Iluminado | Quem Faz Correr Quim?
15/11/2024, 21h45 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola

Comboio da Canhoca
de Orlando Fortunato
Angola, 2004 - 90 min
12/11/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola
Carnaval da Vitória | O Ritmo do Ngola Ritmos
sessão com apresentação
CARNAVAL DA VITÓRIA
Angola, 1978 – 39 min

O RITMO DO NGOLA RITMOS
Angola, 1978 – 59 min

de Antonio Ole
duração total da projeção: 98 min | M/12

Resistir e vencer o colonialismo. Celebrar a vitória, revalorizando manifestações culturais ancestrais, desvalorizadas pelo colonizador. É simples, o propósito de CARNAVAL DA VITÓRIA, realizado após a formação de Antonio Ole pelo coletivo francês Unicité e dos primeiros estudos no American Film Institute (depois, entre 1981 e 1985, estudou Cultura Afro-Americana e Cinema na UCLA). Se Ole veio a notabilizar-se como artista plástico e fotógrafo, após a independência, como realizador de televisão, assinou vários filmes sobre a vida, profissões e economia do país. Agostinho Neto, cujo poema Havemos de Voltar é dito a abrir a obra, era líder-poeta num país com esperança, celebrando um Carnaval – clandestino durante a guerra de libertação – que saía para a luz, também através do cinema, integrando-se num movimento nacional, que reclamava o futuro a partir dos modos de resistência anticolonial. O RITMO DO NGOLA RITMOS dá sequência ao interesse de Ole em filmar manifestações anticoloniais que persistiram. Filmar a história de um grupo que, desde 1947, afirmou as culturas indígenas, cantando música popular em kimbundu, depois misturando ritmos através da criação do semba, e cujos elementos foram presos pela ditadura portuguesa, foi, de novo, uma revalorização dos modos de resistência.  “E o ritmo se fez luta e a luta se fez vitória, é preciso contar, é preciso cantar”.

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13/11/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola
Monangambé | Sambizanga
MONANGAMBÉ
com Carlos Pestana, Noureddine Dreis, Mohamed Zinet
Argélia, 1969 – 17 min

SAMBIZANGA
com Elisa Andrade, Domingos de Oliveira, Jean M’Vondo
Angola, França, 1973 – 102 min

de Sarah Maldoror
duração total da projeção: 119 min
legendado eletronicamente em português | M/12

MONANGAMBÉ, primeira adaptação por Sarah Maldoror (então já companheira de um dos fundadores do MPLA, Mário Pinto de Andrade), de uma obra do escritor angolano José Luandino Vieira – O Fato Completo de Lucas Matesso –, retrata o desconhecimento da cultura angolana pelo colonizador e a violência policial da ditadura, usando o jazz do Art Ensemble of Chicago como um “canto” angustiante e libertador. As fotografias do genérico final são de Augusta Conchiglia. Adaptação de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, também de Luandino, SAMBIZANGA é a primeira longa-metragem de Sarah Maldoror. Se o livro se centra na figura de Domingos Xavier, operário envolvido na resistência anticolonial, torturado até à morte em 1961 pela polícia política portuguesa, o filme valoriza o ponto de vista da mulher, Maria, que parte em busca do marido, viajando até Luanda. Como escreveu Annouchka de Andrade, “SAMBIZANGA tem uma estética sensual, transmitida através de cenas do quotidiano: o casal Maria e Domingos, as longas viagens de Maria a pé por caminhos poeirentos, e a relação de Maria com o filho que carrega nas costas (...)”.

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14/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola
Uma Festa Para Viver | Nelisita
UMA FESTA PARA VIVER
Angola, 1975 - 35 min

NELISITA
Angola, 1983 - 64 min

de Ruy Duarte de Carvalho
duração total da projeção: 99 min | M/12

Formado em regência agrícola, Ruy Duarte de Carvalho era dos poucos angolanos com formação em cinema. Quando foi contratado pela Televisão Popular de Angola, era tempo do que chamou “cinema de urgência”, do registo do nascimento da nação. Nesse contexto realiza UMA FESTA PARA VIVER, registo das expectativas e tensões nos 15 dias que antecedem a independência, tanto de famílias residentes nos musseques de Luanda como de funcionários de antigas empresas portuguesas. Em 1979 inicia a série de filmes com os Mumuíla, “Presente Angolano: Tempo Mumuíla”, apoiando-se no conhecimento antropológico. Deste processo nascerá a primeira longa-metragem ficcional, NELISITA, retrato de um mundo dominado pela fome, com apenas duas famílias sobreviventes, onde, num armazém, espíritos guardam alimentos. A partir de um argumento escrito com base em peças da tradição oral nyaneka, Nelisita, o que se gera a si mesmo, é um salvador num filme visionário que, naquele início dos anos 80, antecipava as ameaças ao futuro angolano, ainda a desenhar-se. Filme de Estado é já uma obra de contestação ao mesmo.

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15/11/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola
Nascidos Na Luta, Vivendo Na Vitória | Um Lugar Limpo e Iluminado | Quem Faz Correr Quim?
NASCIDOS NA LUTA, VIVENDO NA VITÓRIA
de Asdrúbal Rebelo
Angola, 1979 – 18 min

UM LUGAR LIMPO E ILUMINADO
de Mariano Bartolomeu
com Mario Guerra, Alden Knight, Dolores Pedro
Cuba/Angola, 1991 – 17 min / legendado eletronicamente em português

QUEM FAZ CORRER QUIM?
de Mariano Bartolomeu
com Afonso Malheiro, Sandra Pitra, Maria J. Swart
Angola, 1992 – 21 min

duração total da projeção: 56 min | M/12

Curta-metragem militante de um dos pioneiros do cinema angolano pós-independência, Asdrúbal Rebelo, foi realizada um ano após a primeira disputa pelo poder no seio do MPLA. Mostra a formação militar de crianças preparadas para a “segunda guerra de libertação”, segundo um jovem entrevistado. Pertencente à segunda geração de cineastas angolanos, Mariano Bartolomeu estudou na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Havana, antes de se radicar no exterior (Itália e Estados Unidos). O seu cinema articula o interesse pela realidade angolana com fortes influências estéticas ocidentais. Filmado na Escola de Havana, e inspirada no conto The Killers de Ernest Hemingway, UM LUGAR LIMPO E ILUMINADO é protagonizado por um ex-pugilista que, perseguido por assassinos devido a algo passado, busca refúgio numa cidade caribenha com a namorada. Metáfora da situação de Angola, QUEM FAZ CORRER QUIM? acompanha Quim, que regresso à amante, perturbado pelo nascimento do primeiro filho, deformado.

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15/11/2024, 21h45 | Sala M. Félix Ribeiro
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Angola
Comboio da Canhoca
de Orlando Fortunato
com Enoque Caracol, Cristina Cavalinhos, Filipe Crawford
Angola, 2004 - 90 min
Orlando Fortunato, um dos pioneiros do cinema angolano, dedicou grande parte da sua obra a tratar o impacto do colonialismo no país. A sua formação inicial, que partilhou com Ole e Duarte de Carvalho, foi posteriormente aprofundada na London International Film School. Como os companheiros, e devido à falta de recursos (financeiros e de película) realizou vários documentários antes de se estrear na ficção com COMBOIO DA CANHOCA. Realizado em 1989, o filme estreou apenas em 2004, quando o Estado angolano quis dar novo fôlego à produção de cinema. Retrato da violência repressiva das autoridades coloniais, dramatiza um episódio real, protagonizado por um grupo de nacionalistas presos, e viajando num vagão de mercadorias, sem janelas, num comboio circulando entre Luanda e Malanje. Através deles, revisita-se o tempo em que emerge a consciência anticolonial. Primeira apresentação na Cinemateca.

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