CICLO
Terence Davies, O Cantor da Memória


O desejo de organizar uma retrospetiva da obra de Terence Davies vinha já de longe e a vontade era que o realizador pudesse participar nesse momento de homenagem. Infelizmente, Terence Davies foi diagnosticado com um cancro no início de 2023, tendo falecido poucos meses depois, aos 77 anos. Assim, esta não é tanto uma retrospetiva “In Memoriam”, é antes uma retrospetiva feita apesar – e “a pesar” – da sua morte.

Filho mais novo de uma grande família católica e de classe trabalhadora da zona de Liverpool, Terence Davies podia nunca ter chegado a fazer cinema. Nascido meses depois do armistício, em 1945, Davies ficaria órfão de pai aos sete anos. Apesar das dificuldades económicas do pós-Guerra, dos comportamentos abusivos do pai e do contexto repressivo de Kensington, foram as matinés de fim de semana que transformaram o imaginário do pequeno Terence. Ele e as suas irmãs mais velhas não faltavam a qualquer das sessões com musicais americanos que se estreavam nas salas das redondezas (especialmente aqueles com Doris Day). Assim o cinema foi-se imiscuindo no dia-a-dia salobro daquela comunidade pobre, conservadora e cinzenta (palavras do próprio). Não concluindo o ensino secundário, Davies vê-se obrigado a trabalhar como escriturário numa empresa portuária de Liverpool, como contabilista sem formação. Passa aí uma década da sua vida, até que, no princípio da década de 1970, já quase a chegar aos 30, decide mudar de vida.

Com as suas poupanças inscreve-se numa escola de teatro próxima (a Coventry Drama School) com o intuito de se tornar ator – já que vinha participando num grupo de teatro amador desde o final da década de 1960 – mas é aí que, no âmbito de um exercício pedagógico, escreve o argumento do que viria a ser a sua primeira curta-metragem, o filme CHILDREN, baseado nas suas memórias de infância (a violência doméstica, a morte do pai, a escola católica, o bullying). Com esse guião consegue uma bolsa da BFI Production Board para jovens cineastas que lhe permite não só realizar o filme como lhe abre a porta para a National Film School, onde estuda cinema e acaba por realizar – como filme de formatura – a continuação dessa primeira curta, MADONNA AND CHILD. Aqui Davies regressa à personagem de Robert Tucker, o seu alter ego, agora na meia-idade, preso entre a devoção à mãe e a latência recalcada do seu desejo homossexual. Três anos depois, o realizador encerra a TRILOGY com a curta DEATH AND TRANSFIGURATION, na qual imagina a personagem de Robert Tucker já idoso, à beira da morte, recordando os vários momentos da sua vida.

Esta primeira trilogia define os contornos, as preocupações e as recorrências de uma obra singular no contexto do cinema inglês – Jean-Luc Godard afirmou (a propósito de DISTANT VOICES, STILL LIVES) que Terence Davies era o único cineasta inglês que lhe interessava. De facto, Davies foi um dos poucos realizadores britânicos a afirmar-se enquanto auteur e o seu cinema é de uma unidade absoluta. As questões da memória atravessam cada um dos seus filmes, já que todos os seus filmes são retratos de época (cujas histórias decorrem entre o fim do século XIX e meados do século XX). A estas juntam-se os sempiternos temas da religião, do conservadorismo, do desejo proibido (a homossexualidade ou as relações extraconjugais no contexto de classes puritanas) e dos traumas da guerra e da violência doméstica (os pais abusadores reaparecem em vários filmes e os fantasmas das trincheiras ressurgem em títulos como SUNSET SONG e BENEDICTION).

Mais do que as recorrências temáticas, há também as recorrências formais: o cinema de Terence Davies é composto na total elegância minimalista, nos lânguidos movimentos de câmara, na estase dos olhares, na contemplação das paisagens e na pujança de uma narração esparsa e fragmentária. A isso, junta-se uma dedicação aos atores e ao trabalho em torno da escrita e desenvolvimento de personagens (não esqueçamos que Davies quis ser ator e dirigiu peças de teatro radiofónico), que se revela na subtileza dos seus protagonistas, atravessados por dilemas surdos, melancolias do olhar, dores inomináveis e vontades indizíveis. A isto junta-se o trabalho sistemático em torno da autoficção, numa primeira fase, e em torno dos pressupostos da adaptação literária (que Davies trabalha com renovado fulgor).

Embora curta, a filmografia de Terence Davies organiza-se sequencialmente em conjuntos de três: considerando a TRILOGIA como uma longa-metragem, esta liga-se aos dois filmes seguintes, DISTANT VOICES, STILL LIVES e THE LONG DAY CLOSES compondo uma “trilogia” autobiográfica (focada essencialmente em torno das suas memórias de infância e juventude); depois desta, surgem três retratos de mulheres em pontos de rutura – THE HOUSE OF MIRTH, THE DEEP BLUE SEA e SUNSET SONG – e depois destes, três retratos de poetas – A QUIET PASSION (sobre Emily Dickinson), BENEDICTION (sobre Siegfried Sassoon) e as curtas-metragens BUT WHY?, PASSING TIME e HOME! HOME! (todas em torno de poemas escritos pelo próprio Davies – ele que escrevia regularmente poesia desde a década de 1980, sendo que a mesma permanece quase invisível). Entre estes três núcleos de “três” encontram-se dois filmes de ligação: THE NEON BIBLE, filme que se aproxima às grandes personagens femininas do segundo núcleo (através da extraordinária Gena Rowlands) ainda pelo olhar juvenil de um rapaz tímido; e OF TIME AND THE CITY, o seu único documentário, que preenche o interregno de onze anos em que o realizador não conseguiu financiamento para vários dos seus projetos.

Nesta retrospetiva apresenta-se a integralidade da obra do realizador (catorze títulos, cinco curtas e nove longas), juntando-se-lhe ainda dois títulos extra: o filme póstumo que Davies delineou, mas que foi finalizado pelo seu assistente (a curta-metragem HOME! HOME!, um “autorretrato” encomendado pelo Centre Pompidou que lhe dedicou uma retrospetiva no passado mês de março), e aquele que era o seu filme preferido, aquele que mais vezes citou, aquele cujas canções conhecia de cor (e cantava às escondidas): YOUNG AT HEART, protagonizado por… Doris Day – naturalmente!
 
02/09/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Terence Davies, O Cantor da Memória

The Long Day Closes
Aqueles Longos Dias
de Terence Davies
Reino Unido, 1992 - 82 min
 
03/09/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Terence Davies, O Cantor da Memória

Distant Voices, Still Lives
Vozes Distantes, Vidas Suspensas
de Terence Davies
Estados Unidos, 1988 - 84 min
04/09/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Terence Davies, O Cantor da Memória

The Terence Davies Trilogy Children – Madonna And Child – Death And Transfiguration
de Terence Davies
Reino Unido, 1976-1983 - 101 min
05/09/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Terence Davies, O Cantor da Memória

Young At Heart
Apaixonadas
de Gordon Douglas
Estados Unidos, 1954 - 117 min
05/09/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Terence Davies, O Cantor da Memória

The Neon Bible
A Bíblia de Neon
de Terence Davies
Reino Unido, 1995 - 92 min
02/09/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Terence Davies, O Cantor da Memória
The Long Day Closes
Aqueles Longos Dias
de Terence Davies
com Leigh McCormack, Marjorie Yates, Anthony Watson
Reino Unido, 1992 - 82 min
legendado eletronicamente em português | M/12
THE LONG DAY CLOSES, filme de claras ressonâncias autobiográficas (como muito do cinema do realizador), é também o seu filme de maior exposição, aquele onde o cineasta nos dá acesso à matriz do seu olhar, à sua formação cinéfila e à sua desmesurada paixão pelo cinema musical de Hollywood, em particular, a sua desmesurada paixão por Doris Day. Realizado logo após DISTANT VOICES, STILL LIVES, o filme prossegue o retrato da sua infância na Liverpool dos anos do pós-Guerra: a vida em família, os rituais e tradições, as alegrias e também as tragédias. O cinzentismo britânico (o catolicismo, o bullying, o sistema de ensino) é transfigurado pelo olhar maravilhado de uma criança que descobre as imagens dos filmes americanos e as melodias que deles emanam. Uma viagem pela memória e pelas fantasias da memória.

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03/09/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Terence Davies, O Cantor da Memória
Distant Voices, Still Lives
Vozes Distantes, Vidas Suspensas
de Terence Davies
com Freda Bowie, Peter Postlethwaite, Angela Walsh, Diane McBain
Estados Unidos, 1988 - 84 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Terence Davies revelou-se na longa-metragem com DISTANT VOICES, STILL LIVES, uma estreia que lhe daria, desde logo, o Prémio da Crítica no Festival de Cannes e no Festival de Toronto e o Leopardo de Ouro em Locarno. Uma deslumbrante sucessão de “vinhetas”, com os seus planos fixos e lentos movimentos de câmara, que parecem deslizar ao som da música que lhes serve de fundo. Uma aliança perfeita de imagem e som, que é também um fabuloso exercício de memória inspirado que é nas recordações de infância do realizador, nos anos 50. Um retrato mundano e operático da vida de uma família de classe trabalhadora da zona de Liverpool, onde uma série de personagens vivem atormentadas pela figura de um pai violento. Intimidade e beleza, amor e luto, tudo aquilo que viria a definir o cinema de Terence Davies. O filme é apresentado em nova cópia digital restaurada.
 
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04/09/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Terence Davies, O Cantor da Memória
The Terence Davies Trilogy Children – Madonna And Child – Death And Transfiguration
de Terence Davies
com Phillip Mawdsley, Nick Stringer, Valerie Lilley
Reino Unido, 1976-1983 - 101 min
legendado eletronicamente em português | M/12
A personagem de Robert Tucker percorre as três primeiras curtas-metragens realizadas por Terence Davies – um claro alter ego do realizador. Desenvolvida ao longo de quase uma década, a trilogia apresenta Tucker na infância (CHILDREN), descrevendo as suas dificuldades de integração no ambiente escolar e a perda do pai, regressa a ele na meia-idade (MADONNA AND CHILD), entre o recalque da sua homossexualidade e a relação de dependência com a mãe e a fé católica, e, na terceira e última curta (DEATH AND TRANSFIGURATION), imagina a sua própria morte. Cada um destes três filmes constitui o processo de aprendizagem do próprio Terence Davies, que escreveu o primeiro filme na Coventry Drama School e realizou o segundo na National Film School – recorde-se que Davies trabalhou como contabilista durante mais de uma década e que só perto dos 30 anos decidiu estudar cinema. Os filmes da trilogia são apresentados pela primeira vez na Cinemateca.

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05/09/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Terence Davies, O Cantor da Memória
Young At Heart
Apaixonadas
de Gordon Douglas
com Doris Day, Frank Sinatra, Gig Young
Estados Unidos, 1954 - 117 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Terence Davies adorava Doris Day. Talvez o mais certo seja dizer, idolatrava-a! “Ela corporiza a própria ideia de perfeição”. E tudo porque, quando tinha apenas 11 anos, entrou numa sala de cinema e viu YOUNG AT HEART – o musical onde, pela primeira vez, Doris Day contracenou com Frank Sinatra. De facto, este é um filme obsessivo para Davies: uma das suas canções aparece em THE LONG DAY CLOSES, o realizador refere-o em OF TIME AND THE CITY e, em entrevista, explicou que o filme influenciou (subconscientemente) THE DEEP BLUE SEA. Na última edição da sondagem da revista Sight and Sound, entre os dez melhores filmes de sempre escolhidos pelo realizador encontra-se YOUNG AT HEART, seguido da justificação “Porque tem a Doris Day!”. Primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

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05/09/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Terence Davies, O Cantor da Memória
The Neon Bible
A Bíblia de Neon
de Terence Davies
com Gena Rowlands, Diana Scarwid, Denis Leary, Jacob Tierney, Drake Bell
Reino Unido, 1995 - 92 min
legendado em português | M/12
A terceira longa-metragem da Terence Davies marca uma mudança de paradigma no seu percurso: afasta-se do registo estritamente autobiográfico, lança-se, pela primeira vez, na adaptação de uma obra literária preexistente (algo que marcará muita da sua produção subsequente) e, por fim, entrega-se ao retrato histórico dos EUA (algo que será outra das suas posteriores recorrências). No entanto, Davies continua a filmar a personagem de um adolescente tímido entre uma mãe desequilibrada (Diana Scarwid) e um pai violento (Denis Leary). Eis senão quando aparece a desarmante e desconcertante Gena Rowlands para soltar o imaginário evangélico daquela pequena povoação rural. Um dos filmes mais ambiciosos do realizador, onde o poder do artifício se alia à elegância dos gestos. Primeira apresentação na Cinemateca.

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