CICLO
Boris Lehman - Realizador Convidado


Quando, no seu inquérito, o Libération pergunta a Boris Lehman: “porque é que filma?”, ele, antes de responder, devolve a pergunta: “porque é que faço cinema?”. Apesar de a sua filmografia incluir uma listagem de 79 filmes, Boris Lehman (n. 1944) diz que fez mais de 500 (às vezes diz 600). A instabilidade do número, e a sua enormidade, são indícios do seu modo de estar no cinema que é inseparável do seu modo de estar na vida: Boris Lehman não para de filmar. O gesto cinematográfico é para si uma questão de vida ou morte (“não filmo mais do que o tempo que me resta para viver”), uma maneira de mostrar o que viu, o seu modo de se encontrar no e com o mundo e de entrar em comunhão com as coisas e com os outros (às vezes com os outros através das coisas, como muito literalmente em CHOSES QUI ME RATTACHENT AUX ÊTRES).
Em A COMME ADRIENNE diz para um dos amigos com quem está a filmar (ele só filma com amigos): “só faço um take”. É rápida e seca essa afirmação, Boris está a responder a uma exigência da rodagem. Mas apesar de breve ela indica a pedra de toque do cinema de Boris: é um cinema indissoluvelmente ligado à vida, que também acontece num só take – o que ressoa no que Pasolini diz em Observações sobre o plano-sequência sobre a vida que, como o cinema, é um plano sequência infinito e que o filme, como a morte, é aquilo que lhe dá sentido (um sentido que só pode ser, assim, póstumo). Nas suas [MES] ENTRETIENS FILMÉS, Boris Lehman diz: “filmo, não faço filmes”.
Nas datas é comum encontrar, não apenas anos, mas períodos (na maioria das vezes longos) de tempo. A ordem cronológica é impossível, no cinema de Boris Lehman, que acontece como um fluxo contínuo, com pequenas e breves paragens – os filmes – com que organiza as imagens que vai filmando e colecionando. Cada filme é uma espécie de morte que organiza, como o flash que Pasolini descreve no fim desse seu texto, as imagens filmadas até aí – é por isso que Boris Lehman diz que os filmes são a sua memória e que guardam, como um rasto, tudo aquilo de que já se esqueceu.
Movida por este elo inextrincável entre cinema e vida, há uma dimensão performática muito particular e forte no trabalho de Boris Lehman (que exploraremos neste programa). Essa dimensão performática tem pelo menos dois espaços de expressão. Há um lado performático, e sobretudo auto-performático, que atravessa todos os seus filmes e que se materializa de modo direto na encenação, isto é, no gesto de fabricar cena e pôr (e pôr-se) em cena. É um dos aspetos mais abordados pelos comentadores da sua obra, que por vezes se referem aos seus filmes como “auto-biografias” ou “auto-retratos”. Mas, embora se repita a primeira pessoa nos títulos dos seus filmes (eu, meu, minha), e de não haver filme em que Boris não apareça, a sua presença é uma questão de posicionamento, e não de ego ou narcisismo: em cada filme, Boris Lehman diz eu para chegar ao outro e ao mundo - o que fará com que Dominique Noguez conclua que “talvez tenha feito o melhor cinema na segunda pessoa” dos últimos anos. “A minha vida tornou-se o argumento de um filme que se tornou a minha vida”. A sua entrada em cena é a criação da cena (e de si, numa permanente crise identitária), onde depois convida outros a entrar e a estar, inteiros.
A segunda dimensão da performance é a própria projeção: Boris Lehman acompanha todas as projeções dos seus filmes (como fará aqui na Cinemateca) e não é incomum acabar a jantar ou a beber um copo com os seus espectadores. Costuma ser ele a transportar os seus filmes para as cabines de projeção e HOMME PORTANT SON FILM LE PLUS LOURD – que poderíamos traduzir por “homem a transportar o seu filme mais pesado” - é em parte uma paródia a esse gesto e noutra parte podemos considerá-lo um comentário mordaz aos pesados produtos do cinema. Algumas das suas projeções são performances (projetou, por exemplo, uma vez, as 6 horas e meia do seu filme BABEL à manivela, com o ritmo da projeção a ser ditado pelo ritmo da sua mão). Outras vezes acompanha as projeções com comentários ao vivo, ou convida músicos para trabalhar sobre a projeção dos seus filmes, como fará na primeira destas sessões. É como se procurasse continuar o movimento do cinema, mesmo para lá do filme.
Boris Lehman entrou em contacto com o cinema como cinéfilo (foi assíduo espectador do Festival de Knockke-le-Zoute) e esteve sempre muito ativo nos movimentos de cinema amador. Colaborou na fundação de associações de cinema como o Cinélibre, o Cinédit, o Atelier de Jeunes Cinéastes ou o Club Antonin Artaud, este na instituição psiquiátrica onde também trabalhou, estruturas fundadas para sustentar um modo colaborativo de fazer cinema, criadas para facilitar a troca de material e equipamento entre aqueles que queriam filmar fora dos circuitos profissionais. Aliás, descreve o seu cinema como amador e aproxima-o do gesto do cinema primitivo: feito por aqueles que inventam o cinema à medida que o fazem. Faz particularmente filmes de família, diz, e repete em entrevistas a profunda admiração e afinidade que tem com Jonas Mekas, alguém que também dizia “não faço senão home movies”. Apesar de nunca filmar a sua família de facto – diz-se órfão, no cinema - filma com amigos atrás e à frente da câmara e filma a sua intimidade (e por isso, diz, deixou de ter intimidade). E tem a mesma atenção ao banal (o “infra-ordinário” de Pérec), numa constante observação do gesto minúsculo, dos movimentos comuns, anódinos, numa convivência com os tempos-mortos, com os não-acontecimentos, invisíveis, desconsiderados. É talvez a dimensão mais delicada e bela do seu cinema, uma atenção ao invisível comum.
Boris Lehman visita a Cinemateca pela quarta vez, depois de no ano passado ter vindo a propósito do Doc’s Kingdom (programa que provocou este). O cineasta acompanhará, como de costume na rubrica regular de programação “Realizador Convidado”, todas as sessões ao longo de cerca de duas semanas. Quase todos os filmes projetados são primeiras exibições na Cinemateca, continuação de um percurso infindável pelo cinema de Boris Lehman. É um programa que se concentra no dinamismo do seu cinema, que tenta perceber e dar a ver os engenhos cinematográficos que Boris criou para aceder e se ligar ao mundo e aos outros. Poderia ser outro programa, poderiam ser outros, infinitos. Quanto infinitos poderiam ser os filmes de Boris Lehman.
 
 
12/12/2023, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Boris Lehman - Realizador Convidado

Album 1
de Boris Lehman
Bélgica, 1974 - 57 min | M/12
 
13/12/2023, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Boris Lehman - Realizador Convidado

À La Recherche du Lieu de Ma Naissance
de Boris Lehman
Bélgica, 1990 - 78 min
14/12/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Boris Lehman - Realizador Convidado

Couple, Regards, Positions
de Boris Lehman
Bélgica, 1983 - 56 min
15/12/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Boris Lehman - Realizador Convidado

Masque | La Dernière (S)Cène : L’Évangile Selon St-Boris | L’Image, Le Monde | Choses qui Me Rattachent Aux Êtres | L’Homme de Terre
duração total da projeção: 83 min
16/12/2023, 14h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Boris Lehman - Realizador Convidado

Mes Entretiens Filmés
de Boris Lehman
Bélgica, 1995-2012 - 404 min
12/12/2023, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Boris Lehman - Realizador Convidado
Album 1
de Boris Lehman
Bélgica, 1974 - 57 min | M/12
Sessão acompanhada ao vivo por leituras de Boris Lehman e música dos Sambacalao
“Concebi este filme em 1974 para o primeiro festival nacional de super 8. Os organizadores, à semelhança do que tinha sido feito em Paris um ano antes, pediram a alguns profissionais que realizassem um filme neste formato, reservado a amadores. Muitos recusaram. Eu não. Com cerca de vinte bobines, fiz um filme de uma hora, praticamente sem desperdício, sem sobras. O princípio do filme foi o seguinte. Como as regras do festival proibiam que os amadores apresentassem filmes de família e de férias, e tudo me era permitido, pensei em fazer um [filme de família]. E, como se falava muito na democratização do cinema graças ao super 8, pensei em envolver outras pessoas na realização do meu filme. Filmei e fui filmado por 150 pessoas, amigos e outras pessoas, quando as fui visitar a suas casas ou encontradas na rua durante os meses de julho e agosto de 1974, em Bruxelas e arredores. (…) Filme-bruto, de família sem família, ALBUM 1, na sua exploração técnica e estética, atinge o grau zero do cinema. Assim, vemos uma estação sem o comboio a chegar, a entrada de um diretor na sua fábrica, uma refeição de bebé, a leitura de cartas de tarot, o irrigador sem água e até um leão de Potemkin” (Boris Lehman). Primeira exibição na Cinemateca. E será única, porque é também uma performance (repetindo o dispositivo da sua primeira projeção).

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
13/12/2023, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Boris Lehman - Realizador Convidado
À La Recherche du Lieu de Ma Naissance
de Boris Lehman
Bélgica, 1990 - 78 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Com a presença de Boris Lehman
O título indica o percurso: Boris Lehman parte à procura do lugar do seu nascimento. Nesse movimento, não só descobre que o registo do nascimento e da morte se encontram na mesma repartição de Lausanne (o filme segue a burocracia da existência e cruza, por vezes bruscamente, sem piedade, o nascer e o morto); como, ao seguir para trás o percurso da sua vida (num exercício de pós-memória), segue a errância e os gestos que se repetem, como ladainhas, para assegurar cada presente da cultura judaica. É uma espécie de sinédoque: “partir do EU para falar do mundo (a menos que seja ao contrário)” (B.L.). É a primeira entrada, neste programa, na cosmogonia do cinema de Boris: olhar para o minúsculo, descobrir um mundo.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
14/12/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Boris Lehman - Realizador Convidado
Couple, Regards, Positions
de Boris Lehman
Bélgica, 1983 - 56 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Com a presença de Boris Lehman
“É um filme de amor que fala de um casal, mas não de forma psicológica. É filmado inteiramente sem cenário (sobre fundo preto e sem som). É composto por uma sucessão de quadros, cenas que evocam a dificuldade, até mesmo a impossibilidade, de um homem e uma mulher se comunicarem, se unirem… Como o filme é silencioso (exceto uma sequência central) e muitas cenas são filmadas em grande plano sem qualquer referência à realidade, o mais pequeno detalhe torna-se significativo”. “Concebido como uma colagem, o sentido do filme dá-se como nos sonhos, pelas associações e analogias dos elementos que pôs em jogo. Para além da magia das imagens, do sadomasoquismo de certas cenas, do esoterismo do seu propósito, é um filme de solidão, sofrimento e amor.” “É um jogo experimental”, “um ensaio de cinema alquímico” (Boris Lehman). A exibir em cópia digital.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
15/12/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Boris Lehman - Realizador Convidado
Masque | La Dernière (S)Cène : L’Évangile Selon St-Boris | L’Image, Le Monde | Choses qui Me Rattachent Aux Êtres | L’Homme de Terre
duração total da projeção: 83 min
legendados eletronicamente em português | M/12
Com presença de Boris Lehman e Saguenail
MASQUE
Bélgica, 1987 - 9 min

LA DERNIÈRE (S)CÈNE : L’ÉVANGILE SELON ST-BORIS
Bélgica, 1995-2003 - 14 min

L’IMAGE, LE MONDE
Bélgica, 1999 - 5 min

CHOSES QUI ME RATTACHENT AUX ÊTRES
Bélgica, 2010 - 15 min

L’HOMME DE TERRE
Bélgica, 1989 - 40 min
filmes de Boris Lehman

Sessão que acompanha o dinamismo e humor do cinema de Boris Lehman, e percorre a linha frágil entre a vida e a morte, onde este sempre se situa. Em MASQUE a máscara fúnebre de Boris Lehman é fabricada enquanto ele está vivo (o que exige criar um artefacto rudimentar para que continue a respirar dentro do gesso). O gesto é acompanhado do princípio ao fim. Em LA DÉRNIERE (S)CÈNE, uma ceia (a última) em frente a uma demolição: “vou morrer”, diz, na companhia dos seus amigos. CHOSES QUI ME RATTACHENT AUX ÊTRES é literal: as coisas que o ligam aos seres são enumeradas, entre esquecimentos, enganos e distrações (de vez em quando começa a usar as coisas que está a enumerar). Um exercício de memória que relembra a aleatoriedade do arquivo daquilo que vai restar de nós quando está (ou estiver) nas mãos de outros. Em L’IMAGE, LE MONDE, o planeta Terra é esvaziado até caber nas mãos de Boris. E sobre L’HOMME DE TERRE, ele diz o que poderia resumir toda a sessão: “Filmo constantemente este presente enquanto está a desaparecer. Apesar de mim, torno-me o arqueólogo de amanhã. Em L’HOMME DE TERRE, Paulus Brun esculpe um duplo de mim em barro e eu filmo esta construção antes de a destruir, de a apagar, de a obliterar. (…) Uma coisa aparece e depois desaparece, sempre. Estou a espalhar inúmeros espelhos frágeis no meu caminho, que eventualmente se vão estilhaçar e transportar fragmentos de mim, que alguém, algum dia, vai recolher e reconstruir.” Primeiras exibições na Cinemateca (à exceção do último filme).

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
16/12/2023, 14h30 | Sala Luís de Pina
Boris Lehman - Realizador Convidado
Mes Entretiens Filmés
de Boris Lehman
com a participação de entre outros, Dominique Païni, Jean-Pierre Gorin, Jean Rouch, Saguenail Abramovici, Regina Guimarães, Jonas Mekas, Robert Kramer
Bélgica, 1995-2012 - 404 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Com a presença de Boris Lehman e Saguenail
Logo no início, um intertítulo anuncia “Cineastas fora do nosso tempo”, numa paródia à famosa série de Janine Bazin e André S. Labarthe. MES ENTRETIENS FILMÉS é, nas palavras de Boris Lehman, “um manifesto do cinema independente e artesanal, de um cinema livre de constrangimentos financeiros e profissionais”. Apesar de ser feito quando Boris já não queria fazer filmes, tornou-se, “quase e apesar de tudo, um filme”. As conversas, que começam por ser sobre o cinema de Boris, acabam por ser conversas sobre o cinema todo. São lições preciosas, exibidas pela primeira vez completas na Cinemateca.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui