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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: Maria João Madeira, "A Lua e Kinuyo Tanaka"
Sala de Projeção: Maria João Madeira,
Imagem a preto e branco, acordes melodiosos na banda de som. Num plano geral que enquadra obliquamente o portão de traves de uma casa rodeada por um jardim, o movimento de um travelling avança para um grande plano da tábua vertical aí pregada com a inscrição de um nome de família. Parece ser isso, nenhum “no trespassing” wellesiano, mas ainda estamos do lado de cá do território até onde esse plano há-de levar-nos. É uma das poucas imagens desgarradas que conheço de um filme realizado em 1955 por Kinuyo Tanaka.
 
Não entro numa sala de cinema há exactamente 44 dias. Não me lembro de ter passado outros tantos sem ver um filme numa sala de cinema, mergulhada na superfície movente de um ecrã iluminado a partir de um pouso espectador a escuro. Não sonho com isso, a vida das noites paira livremente além do realismo e passar tempo em salas escuras faz parte da minha realidade. Nada de desusado numa programadora de cinema, aí chegada pelo tempo bem passado a ver filmes em salas pequenas e grandes, na sala montada ao ar livre de um parque visiense nocturno, ou no pequeno ecrã como se chamava ao do televisor antes de os ecrãs irem encolhendo à medida das tão úteis dimensões portáteis.
 
As coisas mudam, como as circunstâncias, sabe-se que sim. Também é certo que o mundo continua a fazer-se de muitas coisas, sem que as hipóteses que se abrem fechem as que continuam descobertas e há persistências que não são pura teimosia. Acredito na da sala de cinema, onde a projecção de um filme emprega um tempo num espaço, supondo a disposição. É claro que neste momento está escuro, não no sentido da caverna mas no entendimento figurado que aponta para o estado turvo. A vida tal como a conhecíamos foi suspensa, dando a volta completa ao que se tomava por trivial, ditando inopinadas regras do jogo prático, introduzindo um novo léxico e novos silêncios ou uma renovada percepção dos sons, sincronizando o mundo inteiro na exposição ao mesmo susto e ao mesmo espanto. Na avalanche de surrealidade que não arrasa, antes condensa, as grandes questões, as câmaras em que a acção se concentra são clínicas, de aparato FC, drama e grandeza humanos. As salas de espectáculo estão apagadas em coro, até ver.
 
Tsuki wa noborinu, o título do filme de Kinuyo Tanaka (1909-1977), parece querer dizer que há uma lua a cintilar algures no alto. The Moon has Risen. Consta que andou apagado durante umas décadas, afastado do cânone do cinema clássico japonês que, rendido a Tanaka actriz, tardou a acolher Tanaka realizadora. Eu não acredito em estigmas mas que os há, há? O caso mais nitidamente aproximável é o de Ida Lupino (1918-1995), à luz do cânone americano: um longo e reconhecido percurso de actriz e actriz de grandes realizadores, uma curta e pouco vista obra como realizadora e realizadora de grandes filmes, sensivelmente pela mesma época em que, no Japão dos anos 1950/60, Tanaka dirigia os seus ao arrepio da norma masculina.
As correspondências extravasam as assinaladas, mas chega lembrar além delas que, contando uma sobejamente mais extensa filmografia de actriz – uns 250 títulos iniciados ainda nos anos 20/XX, Kinuyo Tanaka trabalhou com Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi, Yasujiro Shimizu, Mikio Naruse... como Ida Lupino com William Wellman e Raoul Walsh, Nicholas Ray, Fritz Lang... para citar, vezes dois, quatro decisivos exemplos que em cada caso contemplam duetos especiais, especialmente cinematográficos e especialmente populares – Lupino e Walsh, Tanaka e Mizoguchi. Na mais de uma dúzia de filmes da colaboração de Mizoguchi e Kinuyo Tanaka entre 1940 e 1954 contam-se os da enfeitiçante Senhora Oyu (Oyu Sama, 1951) e da estarrecedora Senhora O’Haru (Saikaku Ichidai Onna / “A Vida de O’Haru”, 1952). A Oyu do plano de Tanaka envolta no quimono branco como aparição enquadrada entre a copa raiada de sol de uma árvore para lá do ramo que atravessa a imagem desenhando uma linha horizontal na verticalidade que emana da figura dela. A O’Haru dilacerada que quebra e não quebra a cada golpe na impossibilidade de viver a sua vida senão a quebrar e a não quebrar.
 
A par de Ugetsu Monogatari / Contos da Lua Vaga (1953) e Sansho Dayu / “O Intendente Sansho” (1954), os Mizoguchi seguintes, o filme de O’Haru entranhou a Ocidente a imagem de Kinuyo Tanaka, que não só já tinha o lastro da “mais reconhecida actriz japonesa”, com importantes encontros também com Heinosuke Gosho ou Keisuke Kinoshita, como já oscilara ela própria entre esse papel e o de realizadora. A segunda na História do cinema japonês, aberta nesse capítulo em meados dos anos 1930 por Tasuko Sakane (1904-1975). Em sensivelmente uma década realizou seis filmes, pelos quais teve de lutar enfrentando a política dos estúdios, atalhando a ira com que consta ter sido recebida no Japão depois de uma viagem à América em 1949, e de ter escolhido a independência da Shochiku a que estava ligada desde os 14 anos. E se encontrou resistência em Mizoguchi, teve aliados em Kinoshita e Ozu.
 
Kinoshita escreveu, com Fumio Niwa, o argumento de Koibumi / “Cartas de Amor” (1953), o primeiro filme de Tanaka, em que se reflectem as feridas do pós-guerra numa sociedade que prosseguia brutal no olhar que lançava às mulheres. A essa brutalidade responde um grande plano da personagem interpretada por Yoshiko Kuga, já perto do fim, que tem de ser visto para que se sinta o acossamento, a dor, a incredulidade, a recusa de mais palavras, a convulsão e a contenção. Está tudo na expressão dela encostada a uma rede gradeada com os chapões da luz intermitente de faróis em trânsito a abalarem a imagem do rosto todo em estremecimento. Não sei se há plano aproximável em Tsuki wa noborinu: o segundo filme de Tanaka parte de um argumento de Ozu e Ryosuke Saito, conta com a presença de Chishu Ryu numa história de pai e filhas, mas mesmo se assim descrito lembra Ozu não há-de ser menos dela que o primeiro ou os seguintes.
 
A imagem do portão fechado de Tsuki wa noborinu é de um fulgor discreto. Faz raccord com o interior de uma casa em que tudo parece tranquilo, filtrado por cortinas leves, uma janela-biombo que alguém faz deslizar revelando outro espaço doméstico, uma outra mais larga que nova personagem abre para uma paisagem campestre, ligando a cena ao exterior. Não conheço mais. É o suficiente para sentir a disposição para a imersão.
 
Há muito a escavar. Entretanto, a Lua alta brilha.
 
 
Maria João Madeira
24 de Abril de 2020