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Assunto: Programação; Maria Barroso
Data: 03/09/2015
"Maria Barroso no Cinema de Paulo Rocha" por José Manuel Costa

Maria Barroso no cinema de Paulo Rocha


Se as anteriores incursões que fez no cinema tiveram sobretudo a ver com a declamação e a voz, se depois, com Manoel de Oliveira, veio a ter presenças fortes embora em papéis secundários (papéis que representou sempre muito bem e que tinham já também de algum modo a aura de um tributo que lhe era prestado), a participação de Maria Barroso em Mudar de Vida de Paulo Rocha tem outro nível de importância e de consequência, justificando um lugar notabilíssimo na representação de cinema em Portugal.


O acerto de Paulo Rocha na escolha dos seus três protagonistas abarca-os a todos e não deixa de ser, aliás, um dos atributos que ajudaram a fazer deste filme um dos maiores de sempre do cinema português. Pensando apenas nas duas atrizes principais, que nunca se cruzam em campo, é impressionante constatar quanto assenta também nelas a intensidade e a lucidez com que o filme representa um país e um tempo dele - a sua energia derrotada, ou adiada, o seu bloqueio, a sua asfixia. Em si mesmas, está nelas a dilaceração do presente (Maria Barroso) e a hipótese implausível de um futuro (Isabel Ruth), sendo obviamente sintomático o facto de não haver espaço comum entre as duas (o único elo de “ligação” entre elas, Adelino, acaba por sublinhar, sim, a verdadeira incomunicabilidade entre os seus espaços, ou tempos, logo a impossibilidade de redenção de um pelo outro). E se Mudar de Vida é antes de mais o retrato de um país náufrago, habitado por espectros que não encontram lugar numa ordem maior em transição, e que face a essa ordem estão à partida deslocados, perdidos, sem possibilidade de intervenção, a Júlia de Maria Barroso é um dos pilares disso, construído com uma enorme inteligência, a dialogar com o puro retrato de alienação criado por Geraldo Del Rey. Perante o desespero dele, o desespero dela não é menos intenso ou contraditório, e vale a pena lembrar que só aparentemente pode ser visto como mais passivo. A recusa de Júlia a Adelino não é um ato de conservadorismo moral mas um outro ato de (dupla) revolta – cuja impotência não altera nem a força nem a natureza. Qualquer que seja a revolta de Adelino, a dela é tão grande ou maior, porque incorpora toda a dimensão da sua condição de mulher no mesmo contexto social em que ele se sente excluído. A derrota de Júlia é portanto uma genuína derrota - a derrota de uma personagem fortissima a que Maria Barroso confere todas essas nuances, que representam sempre um universo maior. Há nela, desde o primeiro plano em que entra, um cansaço e uma doença que convivem com raiva, força e lucidez, numa mistura que só uma atriz de grandes recursos pode construir.


Sabemos há muito quanto o nosso Cinema Novo, e mais ainda nos grandes filmes iniciais de Paulo Rocha e Fernando Lopes, pouco ficou a dever às marcas mais diretas da Nouvelle Vague, havendo sempre alguma confusão quando, ao reconhecimento de uma influência geracional, deixamos, nem que seja por omissão, juntar a ideia de uma identificação estética ou narrativa. Não seria portanto de esperar que as atrizes de Rocha vivessem na galáxia da leveza da Nouvelle Vague – e isso mesmo no caso da muito nova Isabel Ruth dos Verdes e do Mudar, cuja força e cuja espontaneidade nasceram, no cinema, indissociavelmente ligadas ao lúcido desencanto de Paulo Rocha. Quanto a Maria Barroso, tanto pela idade (da personagem e da atriz) como pela carga do papel que foi chamada a viver e como, ainda, pela sua própria índole e experiência formativa, o seu universo de raiz era outro, tal como teriam sido outras - a ter havido uma hipótese de continuidade do seu trabalho - as suas hipotéticas famílias cinematográficas. Tanto quanto Rocha escapava a qualquer estereótipo dos cinemas novos (trabalhando sobre elementos clássicos mas também sobre Renoir, o cinema italiano e já também o cinema japonês), a representação de Maria Barroso em Mudar de Vida incorpora uma gravidade e uma densidade que a remetem para outras paragens. No cinema, o seu pathos não pode deixar de colocá-la mais perto de algum cinema italiano (porque me ocorre tanto, por exemplo, a imagem da Alida Valli do Grito, por muito que haja a afastá-las? Apenas pela óbvia ressonância dessa outra história neste filme…?) e não creio que seja muito difícil imaginar conexões mais longínquas e inesperadas. Há planos em que a sua mistura de lucidez e sofrimento, raiva e vacilação, resistência e quebra, força e susto, poderiam remeter para o trabalho das grandes atrizes nórdicas (bergmanianas), não fora, mais uma vez, o caráter tão pontual desta intervenção no cinema, que muito terá deixado por desenvolver e tanto deixou em aberto.


Não temos de resto que procurar famílias para perceber quanto esta presença é sólida e quanto foi fácil a Maria Barroso (que até aí praticamente só fora atriz nos palcos) passar do teatro para este teatro de sombras. No mínimo dos mínimos, há que sublinhar que resolveu muito bem essa ponte, ela que era também uma declamadora, ganhando imediata espessura também à frente da câmara, e dizendo extraordinariamente, sem ponta de afetação, os belíssimos diálogos escritos por António Reis.
Mas até pelo facto de suscitar, ou caucionar, tais especulações, há que afirmar que algo de imenso aconteceu nesta incursão de Maria Barroso no território do cinema, no universo do cinema de Paulo Rocha.


José Manuel Costa

Texto escrito por ocasião do Ciclo "In Memoriam Maria Barroso", organizado na Cinemateca em setembro de 2015, com a apresentação dos filmes "Mudar de Vida", de Paulo Rocha, "Benilde ou a Virgem Mãe" e "Amor de Perdição", de Manoel de Oliveira.